Tenho andado a vaguear, solta e pouco segura pelos dias que passam, uns iguais aos outros, irreconhecíveis, iguais, sempre de mão dada com a ficção, tão real, que tenho lido. Às tantas, sinto-me a habitar um desses livros que leio com tanta alienação.
As fronteiras esbatem-se entre os dois mundos.
Pertenço ao mundo dos livros e eles ao meu.
Deixo de ser eu e, às tantas, sou apenas mais uma personagem a assistir, num canto escuro e lúgrube, a palavras ditas, olhares traçados e gritos mudos.
Houve uma vez três cruzes pregadas no chão. Um dos que estavam crucificados acreditava tanto que dizia a outro: «Tu estarás hoje comigo no Paraíso.» O dia declinou, ambos morreram, partiram. Mas não encontraram nem paraíso nem ressurreição. A profecia não se realizou.
Escuta ainda: este Homem era o maior de todos, era a razão da vida no nosso planeta. A Terra, como tudo o que se encontra acima e abaixo, não é sem Ele senão loucura. Nunca houve, antes ou depois, alguém semelhante a Ele. Mas se é assim, se a natureza nem O poupou, o seu próprio milagre, obrigando-O a viver e a morrer por uma mentira, é o de ser a Terra apenas uma mentira baseada no embuste, na zombaria. Portanto, as próprias leis da Terra não passam de fraude e comédias do Diabo.
Porque são incomparáveis não terei sequer a veleidade de o fazer, mas não resisto a colocar o meu coração de leitora à frente de qualquer réstia de objectividade e declarar que Crime e Castigo foi o amor primeiro e continua, por enquanto, a ocupar os batimentos que me inflamam a vida.
Simplesmente, porque me apaixonei perdidamente por Raskólnikov e Sónia. Eles têm ainda uma certa ingenuidade e um amor perante a vida que não encontrei em nenhuma das personagens d' Os Demónios.
Pelo contrário, todas elas vivem num cinismo e num tédio que me afligiu ao longo daquelas 448 páginas.
Eu sei que uma das provas da genialidade de Dostoiévski está exactamente aí, nessa capacidade de nos fazer sentir o que ele quer que nós sintamos.
E sim, senti.
Plenamente.
A flecha atingiu o alvo. Mas quis arrancá-la com quantas forças me restavam.
Pelo contrário, deixei a mesma seta permanecer nas minhas entranhas quando esta foi disparada por Raskólnikov e Sónia.