Também ali não faltavam as invejas e a má-língua, nem as consabidas pequenas calúnias. Sem este lixo social, não pode haver Humanidade. MIlhões de pessoas morreriam de aborrecimento por falta de imaginação, como sucede às moscas no Outono, se as privassem do oxigénio viciado da mentira.
A descoberta do amor, do seu sentir, das suas penas, nascendo assim para a vida o coração, é a história d'O Pequeno Herói.
Dostoiévski escreveu esta história enquanto aguardava, preso, pela execução da pena de morte, da qual foi salvo, nos últimos minutos, por magnanimidade imperial.
Estas foram páginas compostas na certeza de morrer, mas também páginas com vida plena.
Cadernos do Subterrâneo conseguiu desfragmentar-me durante a sua leitura. Por cada página, um fragmento, 189 ao todo.
Cada um deles uma reflexão ou especulação, não sei bem, sobre:
A «transformação das convicções» (L. Chestov), o problema do «livre arbítrio e da rebelião do homem - metafísica, moral, social» (Marc Slonim).
Excerto da introdução da edição 610 da Assírio & Alvim
Estando os Cadernos do Subterrâneo divididos em duas partes, pessoalmente gostei mais da primeira, onde os tais fragmentos de que falei há pouco se concentram mais.
Sobre esta obra Dostoiévski escreveu ao seu irmão:
Estou a trabalhar no meu conto. Tento ver-me livre dele o mais depressa possível, mas também tento fazê-lo o melhor possível. Está a ficar mais difícil fazê-lo do que pensava antes. No entanto, é mesmo necessário que resulte bem, é necessário para mim próprio.
Deixem-nos sós, sem livros, e ficaremos perdidos, abandonados, não saberemos a que nos agarrar, o que seguir; que amar, que odiar, que respeitar, que desprezar?
No que me diz respeito, pessoalmente, tudo o que fiz na vida foi levar até ao limite o que vós mesmos tivestes medo de levar nem que fosse até meio, tomando além disso a vossa cobardia por bom senso - o que vos consola e vos ilude. A tal ponyo que, de todos nós, sou sem dúvida eu quem sai mais «vivo» disto tudo.
E no entanto é verdade, faço aqui uma pergunta de todo escusada - o que vale mais: uma felicidade barata ou um sofrimento sublime? Caramba, o que vale mais?
O que eu fazia, sobretudo em casa, era ler. Queria que as impressões exteriores viessem abafar o que fervia sem parar no fundo de mim. E as únicas impressões exteriores, para mim, vinham da leitura. A leitura, escusado será dizê-lo, ajudava-me muito - apaixonava-me, preenchia-me, torturava-me.
Um homem evoluído e honrado não pode ser vaidoso sem ao mesmo tempo ser de uma ilimitada exigência para consigo próprio e sem se desprezar por vezes até ao ódio.
Além disso, é possível que o processo de escrever me alivie. Por exemplo, hoje, pesa-me muito uma recordação antiga. Surgiu-me nitidamente há dias e, desde então, meteu-se em mim como aqueles motivos musicais enfadonhos que nunca mais nos largam mas de que temos de libertar-nos. Tenho centenas de recordações desse género, e de vez em quando uma destaca-se do lote e começa a pesar-me. Eu acredito, sabe-se lá porquê, ver-me livre dela se a apontar.
Quanto a mim, escrevo só para a minha pessoa e declaro, de uma vez para sempre, que se escrevo como se estivesse a dirigir-me aos leitores, faço-o exclusivamente por fingimento, porque é mais fácil para mim escrever desta forma. É apenas uma forma, uma forma sem importância, nunca terei leitores. Já o declarei.
Não será possível que o homem gosta da destruição e do caos (porque é indiscutível que às vezes gosta muito, nada a fazer) porque tem um medo instintivo de alcançar o objectivo e concluir a construção do edifício? Talvez só de longe goste do edifício e não de perto. Talvez apenas goste de construí-lo e não de viver nele (...).
Mas o homem é uma criatura leviana e pouco escrupulosa e, talvez, à semelhança do xadrezista, apenas goste do processo de ir para determinado objectivo e não do objectivo em si. E quem sabe (não há a certeza) se, talvez, todo o objectivo a que a humanidade aspira na terra consista exclusivamente nesta ininterrupção do processo de ir para um objectivo (...) na realidade, tem medo de encontrá-lo, juro. Porque sente que, quando o encontrar, não haverá mais nada para procurar (...).
E o nosso homem, para onde vai? Transparece-lhe sempre, pelo menos, um qualquer embaraço quando alcança os objectivos. Gosta de consecução, mas não gosta de conseguir - é, sem dúvida, muito engraçado.