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Essa nobreza apenas existe idealmente e, por assim dizer, em potência nunca se traduz em factos.
Porquê?
Não consigo compreender.
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
Pareceu-lhe então que qualquer coisa se abria de súbito na sua frente, uma luz interior de extraordinária claridade iluminou-lhe a alma. Talvez não durasse mais de meio segundo, mas o príncipe registou uma lembrança nítida e consciente do tom inicial do horrível grito que se lhe escapou do peito e que todas as suas forças teriam sido insuficientes para reprimir. Em seguida, a consciência extingui-se-lhe instantaneamente e achou-se mergulhado no seio das trevas.
Estava com um ataque de epilepsia, o que já há muito tempo lhe não sucedia. Sabe-se com que rapidez estes ataques se manifestam. Nesse momento, o rosto e sobretudo o olhar do paciente alteram-se de maneira tão rápida como incrível. Convulsões e movimentos espasmódicos contraem-lhe todo o corpo e os traços fisionómicos. Gemidos pavorosos, que não é possível imaginar nem comparar a nada, saem-lhe do peito, nada têm de humano, é difícil, senão impossível, supor, quando se ouvem, que são exalados pelo infeliz. Antes se diria que emanam de outro ser oculto no interior do doente. É assim, pelo menos, que muitos definem a sua impressão. Numerosas pessoas afirmam que a vista do epiléptico durante a crise produz um intraduzível efeito de terror.
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
Uma das mais notáveis personagens que sofre de epilepsia é o Príncipe Myshkin n'O Idiota.
Quase podemos arriscar dizer que é uma personagem autobiográfica, baseada na própria experiência de Dostoiévski com a epilepsia. Através do Príncipe Myshkin, Dostoiévski descreve de forma vívida o que se sente antes, durante e depois de um ataque, bem como a visão da sociedade perante a epilepsia.
O Príncipe Myshkin é socialmente ostracizado, em parte pela sua doença (a "doença dos idiotas") e, com esta personagem Dostoiévski contribuiu para acabar com o estigma desta doença..
O Idiota foi escrito entre 1867 e 1868, altura em que Dostoiévski atravessava problemas financeiros. Em fuga dos seus credores, viajando de cidade em cidade, pela Europa fora, esse foi um período da sua vida em que ocorreram os ataques de epilepsia mais severos, agravados quiçá, pelos problemas que atravessava.
Tradução livre do inglês de neurophilosophy.wordpress.com
Desconhece-se quando é que os ataques de epilepsia de Dostoiévski começaram. Uns dizem que começaram na infância, com o primeiro ataque aos nove anos, enquanto outros reiteram que começaram já em adulto. Aliás, é comumente aceite que os primeiros sinais de epilepsia surgiram após ter recebido a notícia da morte do pai.
Diz-se também que o próprio Dostoiévski confessara que os seus ataques começaram após aquela execução encenada, numa noite, já em pleno exílio na Sibéria.
O escritor transpôs para a ficção a experiência com a sua própria doença, criando personagens com epilepsia, tais como o Príncipe Myshkin n'O Idiota e Smerdyakov n'Os Irmãos Karamazov.
A literatura é imortal e intemporal.
Rudyard Kipling nasceu neste bungalow turquesa, em Mumbai, e aí viveu muitos dos seus dias.
Imagem www.thestar.com
Para Lá da Cerca deixa-nos uma marca de amor. Um amor de uma tal beleza grotesca que nos deixa no abismo entre o sentir e o não-sentir.
O título era uma expressão utilizada para se referir a áreas não submetidas à autoridade militar britânica e, portanto, não regida pela lei britânica. Quem transpusesse esse limiar estaria desprotegido, como no amor sem lei, e sujeito a todos os perigos. Por maior que o amor seja, nem sempre o choque cultural o conseguirá manter puro e indelével, como o provérbio hindu:
O amor não tem em conta a casta
nem o sono uma cama dura. Fui
em busca do amor e perdi-me.
E Kipling interpreta logo na primeira página este provérbio, como que deixando o aviso trágico do que se passará de seguida:
Haja o que houver, um homem deve manter-se fiel à sua casta, raça e credo. (...)
Esta é a história de um homem que, deliberadamente, ultrapassou os limites seguros da vida decente em sociedade, e pagou muito caro por isso.
Em primeiro lugar, sabia demais; e, em segundo, viu demais. Interessou-se demasiado pela vida nativa; mas nunca mais o voltará a fazer.
Conto inserido no livro Três Contos da Índia de Rudyard Kipling
Uma pulseira de vidro quebrada significa viúva hindu em toda a Índia, pois, quando o marido morre, as pulseiras são partidas nos pulsos da mulher. (...)
A flor de dhak pode querer dizer "desejo", "vem", "escreve" ou "perigo", consoante os outros objectos que a acompanhem.
Uma semente de cardamomo é "ciúme", mas, quando qualquer coisa é duplicada numa carta-objecto, perde o seu significado simbólico e o seu número indica simplesmente uma dada hora (...).
Viu (...) que a bhusa se referia ao monte de feno em que tinha tropeçado (...).
Portanto, a mensagem dizia: "Uma viúva, no fosso onde há um monte de bhusa, deseja que venhas vê-la às onze horas."
Para Lá da Cerca-Rudyard Kipling
Na manhã seguinte, quando ia a caminho do trabalho, uma velha atirou um embrulho para dentro da sua charrete. O embrulho continha a metade de uma pulseira de vidro, uma flor de dhak vermelho-sangue, uma pitada de bhusa ou feno e onze sementes de cardamomo.
Aquele embrulho era uma carta - não uma desajeitada carta comprometedora, mas uma inocente e ininteligível epístola amorosa.
Para Lá da Cerca-Rudyard Kipling
Kipling passou os seus primeiros anos na Índia e recordou-os sempre como paradisíacos.
"A minha primeira impressão", escreveu na sua autobiografia, "é a luz e a cor do amanhecer, os frutos dourados e purpúras ao nível do meu ombro".
No entanto, em 1871 os pais enviam-no para Inglaterra, em parte para evitar problemas de saúde, e, por outro lado, para iniciá-lo na educação britânica.
Em Inglaterra, ele e a irmã iriam viver os próximos seis anos com a viúva de um velho capitão da marinha chamado Holloway numa pousada chamada Lorne Lodge em Southsea, nos subúrbios de Portsmouth.
Kipling costumava chamar à pousada "Casa da Desolação", pelo tempo de horror, de crueldade e negligência às mãos de Mrs. Holloway.
Lorne Lodge em Southsea
Imagem fabarticles.yolasite.com
A felicidade desta minha Livrologia reside apenas e só na conquista de mais leitores para as fileiras das estantes das bibliotecas.
Somos todos tão boas pessoas que até se torna cómico...
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
Fica mal às pessoas de sociedade mostrar demasiado interesse pela literatura. (...)
É muito mais distinto ter uma carruagem amarela com bancadas e rodas vermelhas.
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
«Este homem deve sofrer horrivelmente.» Pretende «amar olhando o quadro de Holbein», não porque goste de olhar para ele, mas porque sente essa necessidade. Rogojine não só tem uma alma apaixonada, tem também um temperamento de lutador, quer a todo o custo reconquistar a fé perdida. Sente agora essa necessidade e sofre por isso... Sim, acreditar em alguma coisa! Acreditar em alguém! Mas que estranha obra aquele quadro de Holbein!...
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
-Gosto de contemplar este quadro - murmurou Rogojine como se tivesse já esquecido a pergunta.
-Este quadro! - clamou o príncipe, tomado de súbita inspiração. - Este quadro! Mas já reparaste que, olhando, um crente pode perder a fé?
-Sim, perde-se a fé.
Fiódor Dostoiévski-O Idiota
O Corpo de Cristo Morto no Túmulo-Hans Holbein, 1520-1522
Imagem www.pinterest.com
Aos 16 anos, os pais decidem enviar Dostoiévski e o irmão para São Petersburgo para estudarem no Instituto de Engenharia Militar Nikolayev, forçando-os a abandonar os estudos académicos para seguirem carreiras militares.
Dostoiévski sempre detestou o Instituto de Engenharia Militar Nikolayev. Nunca se interessou por ciência, matemática ou engenharia militar, entregando toda a sua paixão ao desenho e à arquitectura.
Como o amigo Konstantin Trutovsky dissera, "Nunca houvera um estudante em todo o instituto com menos interesse pela engenharia que Dostoiévski. Era desajeitado, o uniforme não lhe assentava nada bem e todos os outros acessórios militares pendiam como obstáculos na sua pessoa."
A personalidade e os interesses de Dostoiévski tornaram-no num intruso entre os 120 colegas estudantes.
Sempre demonstrou bravura e um forte sentido de justiça, protegendo os recém-chegados, adaptando-se aos professores, criticando a corrupção entre os oficiais e ajudando os agricultores pobres.
Apesar de solitário e vivendo no seu próprio mundo literário, era respeitado pelos colegas. A sua reclusão e o interesse na religião granjearam-lhe a alcunha de "Monge Photius".
Após a morte do pai, Dostoiévski continuou os seus estudos, passou nos exames e conseguiu o grau de cadete-engenheiro, o que lhe permitiu viver longe da academia.
Em 1843 Dostoiévski aceita uma posição de tenente-engenheiro, mas demite-se no ano seguinte para se consagrar à literatura e, depois de traduções - Eugénia Grandet de Balzac é uma delas - publica o primeiro livro: Pobres Gentes.
Dostoiévski vestido com a sua farda militar de engenheiro
Imagem en.wikipedia.org
Em 1828, uma cena particularmente cruel entre os pais desencadeia nele a primeira crise epiléptica.
O pai, médico pobre e desesperado, é um tirano, avaro e feroz, porque demasiadamente infeliz!
Compreendê-lo não impede odiá-lo.
«Quem não desejou a morte do seu pai?», escreverá mais tarde Dostoiévski.
Ele próprio a deseja naquele dia e, onze anos depois, quando toma conhecimento de que mujiques exaltados assassinaram o velho beberrão, apercebe-se de que nunca deixou de a desejar. Outros a executaram, mas cem vezes em espírito foi ele quem vibrou o golpe; é portanto culpado!
Este remorso é tão importante para o desenvolvimento do pensamento de Dostoiévski, como para a epilepsia, à qual está posssivelmente ligado.
Alimenta o remorso como o seu complexo de inferioridade, a sua raiva por ser pobre, fraco e feio, o seu orgulho, a sua generosidade, o seu egoísmo.
Introdução de Jorge Sampaio n'O Idiota de Fiódor Dostoiévski
Mikhail Andreevich Dostoevsky e Maria Ivanovna Dostoevskaya
Respectivamente pai e mãe de Dostoiévski
Imagem pages.stolaf.edu
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