Em 1864, ainda que desfrutando de relativa notoriedade, acha-se sem um chavo, coberto de dívidas, ameaçado de prisão, desesperado.
Um dos seus credores, o editor Stellovski, propõe-lhe um contrato: o editor compromete-se a publicar, em três volumes, tudo o que Dostoiévski já escrevera e a pagar-lhe três mil rublos.
O autor compromete-se a entregar um manuscrito no ano seguinte.
Mas o contrato prevê sanções progressivas em caso de atraso, que culminam nesta cláusula incrível:
Se o manuscrito não for entregue a 1 de Dezembro de 1966, o autor perde todos os direitos sobre os seus trabalhos presentes e futuros, que revertem para a propriedade exclusiva do editor.
Além disso, Stellovski não paga os três mil rublos combinados em dinheiro: resgata o preço reduzido às outras dívidas de Dostoiévski e reembolsa-as pelo seu valor nominal.
É com uma lâmina apontada à garganta que Dostoiévski escreverá uma das obras-primas da literatura universal: Crime e Castigo.
Mas Dostoiévski assina: para escapar à prisão, para manter a possibilidade de trabalhar como um forçado e, talvez, como jogador, em forma de desafio. (...)
Assinar o contrato de escroque - um dos mais belos da história da edição - foi uma tortura, uma humilhação, um acto de orgulhosa resignação, mas também um desafio, uma aposta!
Dostoiévski ganha a Stellovski, mas perde contra os outros adversários.
Introdução de Jorge Sampaio n'O Idiota de Fiódor Dostoiévski
Pareceu-lhe então que qualquer coisa se abria de súbito na sua frente, uma luz interior de extraordinária claridade iluminou-lhe a alma. Talvez não durasse mais de meio segundo, mas o príncipe registou uma lembrança nítida e consciente do tom inicial do horrível grito que se lhe escapou do peito e que todas as suas forças teriam sido insuficientes para reprimir. Em seguida, a consciência extingui-se-lhe instantaneamente e achou-se mergulhado no seio das trevas.
Estava com um ataque de epilepsia, o que já há muito tempo lhe não sucedia. Sabe-se com que rapidez estes ataques se manifestam. Nesse momento, o rosto e sobretudo o olhar do paciente alteram-se de maneira tão rápida como incrível. Convulsões e movimentos espasmódicos contraem-lhe todo o corpo e os traços fisionómicos. Gemidos pavorosos, que não é possível imaginar nem comparar a nada, saem-lhe do peito, nada têm de humano, é difícil, senão impossível, supor, quando se ouvem, que são exalados pelo infeliz. Antes se diria que emanam de outro ser oculto no interior do doente. É assim, pelo menos, que muitos definem a sua impressão. Numerosas pessoas afirmam que a vista do epiléptico durante a crise produz um intraduzível efeito de terror.
Uma das mais notáveis personagens que sofre de epilepsia é o Príncipe Myshkin n'O Idiota.
Quase podemos arriscar dizer que é uma personagem autobiográfica, baseada na própria experiência de Dostoiévski com a epilepsia. Através do Príncipe Myshkin, Dostoiévski descreve de forma vívida o que se sente antes, durante e depois de um ataque, bem como a visão da sociedade perante a epilepsia.
O Príncipe Myshkin é socialmente ostracizado, em parte pela sua doença (a "doença dos idiotas") e, com esta personagem Dostoiévski contribuiu para acabar com o estigma desta doença..
O Idiota foi escrito entre 1867 e 1868, altura em que Dostoiévski atravessava problemas financeiros. Em fuga dos seus credores, viajando de cidade em cidade, pela Europa fora, esse foi um período da sua vida em que ocorreram os ataques de epilepsia mais severos, agravados quiçá, pelos problemas que atravessava.
Tradução livre do inglês de neurophilosophy.wordpress.com
Desconhece-se quando é que os ataques de epilepsia de Dostoiévski começaram. Uns dizem que começaram na infância, com o primeiro ataque aos nove anos, enquanto outros reiteram que começaram já em adulto. Aliás, é comumente aceite que os primeiros sinais de epilepsia surgiram após ter recebido a notícia da morte do pai.
Diz-se também que o próprio Dostoiévski confessara que os seus ataques começaram após aquela execução encenada, numa noite, já em pleno exílio na Sibéria.
O escritor transpôs para a ficção a experiência com a sua própria doença, criando personagens com epilepsia, tais como o Príncipe Myshkin n'O Idiota e Smerdyakov n'Os Irmãos Karamazov.