Se ao menos tivéssemos livros!
Meu Deus, que tédio mortal!
Os dias eram intermináveis, asfixiantes, monótonos.
Se ao menos tivéssemos livros!
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
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Meu Deus, que tédio mortal!
Os dias eram intermináveis, asfixiantes, monótonos.
Se ao menos tivéssemos livros!
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Torturava-me uma angústia cada vez mais atroz.
«A casa dos mortos», repetia para comigo, observando ao crepúsculo, da entrada da nossa caserna, os forçados vindos da corveia, que erravam, ociosos, pelo pátio e iam e vinham entre as camaratas e as cozinhas. Conforme as atitudes e os rostos, esforçava-me por adivinhar os caracteres daqueles homens que passavam e tornavam a passar diante de mim de sobrolho franzido ou afectando uma alegria ruidosa.
(...)
«Agora, é este o meu ambiente, o meu mundo», pensava.
«Quer queira, quer não, é aqui que tenho de viver.»
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Sentia, adivinhava, que, naquele ambiente, sob todos os aspectos novo para mim, me encontrava completamente às escuras e que a vida é impossível nas trevas.
Tratava-se, pois, para mim, de me adaptar. Por isso, decidi agir francamente e deixar-me guiar pelos meus sentimentos íntimos e pela minha consciência, muito embora, como também não ignorava, isto não passasse ali de um aforismo e tivesse diante de mim a mais imprevista das experiências.
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
André Jorge, editor da Livros Cotovia, deixou-nos hoje.
Era um dos homens mais importantes da edição em Portugal, cujos critérios nunca se vergaram a modas ou lógicas de lucro.
Os nossos leitores poderiam identificar esse princípio independente que ditava o lançamento de cada novo livro.
Não precisamos ir longe, basta lembrar que há pouco mais de um mês chegaram a Portugal dois livros de um autor brasileiro nunca antes cá lido, Marcelo Mirisola, literatura de choque, que dizia ter poucas hipóteses de vender.
Mesmo assim, trouxe cá o autor, e celebrou a liberdade de editar o que sempre “lhe deu na gana”, como também dizia.
Era um apaixonado por gatos, e hoje, a sua Maravilhas, a gata da livraria, está soturna como o dia.
in Facebook-Livros Cotovia
Que fazemos nós aqui?
Somos vivos e não vivemos, e mortos sem estar enterrados, não é verdade?
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Dois prisioneiros acorrentados
1905-1915
Prokudin-Gorskii, Sergei Mikhailovich, 1863-1944, fotógrafo
Estou a esforçar-me por encaixar os nossos forçados em categorias, mas isso é tarefa impossível.
A realidade é infinitamente diversa, esquiva-se às engenhosas deduções do pensamento abstracto e não se submete a nenhuma classificação estreita e precisa.
A realidade tem tendência para a fragmentação contínua, para a variedade infinita.
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Nenhum homem pode viver sem um objectivo, que se esforça por alcançar. Se já não tem objectivo nem esperança, a angústia transforma-o num monstro...
O nosso objectivo, o objectivo de nós todos, era a libertação, a saída do presídio...
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Tenho, no entanto, a certeza de que os mais encarniçados eram precisamente aqueles que acalentavam os sonhos mais insensatos.
Já disse que os indivíduos sinceros e os simples de espírito eram tidos por sinistros imbecis, que só mereciam desprezo.
Eram todos tão amargurados, tão susceptíveis, que não podiam deixar de odiar qualquer pobre diabo desprovido de amor-próprio.
Tirando os poucos tagarelas ingénuos e sem malícia, os restantes forçados, isto é, os taciturnos, fechados em si mesmos, dividiam-se em duas categorias distintas: os bons e os maus, os tristes e os alegres.
Os tristes e os maus constituíam, sem dúvida, a maioria. Se, por acaso, se encontrava entre eles algum possuidor de natureza expansiva, tratava-se sempre de um maldizente inveterado ou de um invejoso.
(...)
Desabafar não era moda. Os bons - muito poucos - tinham aspecto pacífico. Dissimulavam bem as suas esperanças e, bem entendido, tinham pelo sonho uma pecha ainda mais forte do que os maus.
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Aos prisioneiros era-lhes rapado o cabelo apenas de um lado, o direito, para que fossem facilmente identificados caso decidissem fugir.
Só lhes era permitido ler a bíblia, mais especificamente, o Novo Testamento.
www.bbc.com
A Primavera também exerceu os seus efeitos sobre mim.
Revejo-me a espiar avidamente o mundo exterior, pelas fendas da paliçada. De pé, com a cabeça apoiada a um poste, contemplava, com uma obstinação insaciável, a erva que reverdecia ao longo da vala circundante e o céu distante, cada vez mais azul.
A minha inquietação e a minha angústia aumentavam dia-a-dia e a prisão transformava-se num verdadeiro inferno. O ódio que a minha qualidade de nobre me granjeara, da parte dos forçados, nos primeiros anos de reclusão, envenenava-me a vida e eu não a podia suportar.
Por isso pedia muitas vezes baixa ao hospital, sem verdadeira necessidade, apenas para me libertar temporariamente desse ódio teimoso e geral, que nada parecia capaz de apaziguar.
(...)
Assim, na Primavera, entrevisto o fantasma da liberdade, a alegria de toda a Natureza traduzia-se para mim numa tristeza e numa susceptibilidade ainda maiores.
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Abril já começou e a Semana Santa aproxima-se.
Pouco a pouco, iniciam-se os trabalhos de Verão.
O sol torna-se cada dia mais quente, mais luminoso, e o ar cheira a Primavera e perturba os nervos.
A chegada do bom tempo influencia até os homens agrilhoados, desperta neles desejos e ardores, uma tristeza nostálgica.
Pensa-se mais ardentemente na liberdade quando o sol brilha do que durante as borrascas do Inverno ou os dias chuvosos do Outono.
É facto comprovado entre os reclusos: um dia bonito e claro alegra-os, mas torna-os também mais propensos à impaciência e à irritação. Verifiquei, realmente, que as querelas redobravam com a vinda da Primavera.
Havia mais barulho e mais gritos e as questões eram mais frequentes, mas, ao mesmo tempo, a certa altura da corveia, surpreendia-se um olhar melancólico, obstinadamente fixo nas lonjuras azuis, na outra margem do Irtych, onde, numa extensão de mil e quinhentas verstás, se estendia o tapete incomensurável das estepes quirguizes.
Bruscamente irrompia um grande suspiro do fundo do peito, como se o homem se sentisse puxado para essa imensidão de ar livre que sararia a sua alma humilhada e prisioneira.
Fiódor Dostoiévski-Recordações da Casa dos Mortos
Quando Dostoiévski chega à "casa dos mortos" é classificado como um prisioneiro perigoso e, nestes casos, as mãos e os pés eram acorrentados.
O prisioneiro assim deveria viver durante toda a sua estadia na prisão, independentemente da sua duração.
Pintura de Aleksander Sochaczewski
A aplicação de correntes aos prisioneiros nos campos de trabalhos forçados da Sibéria.
en.wikipedia.org
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