Os russos permaneceram no esquecimento durante os meus anos de secundário e anos universitários.
Enquanto divaguei pela literatura portuguesa, em horas intermináveis de aulas, ensaios, apresentações, nunca ninguém referiu os russos e a sua importância na literatura mundial.
Era como se nunca tivessem existido.
Mesmo quando trocava ideias de leituras com colegas e amigos, os russos permaneceram um mistério sobre o qual ninguém ousava falar.
Esse dia, o dia de «Tens de ler os russos», ficou a palpitar no meu subconsciente como um coração desfalecido de saudade por palavras nunca lidas, mas muito ansiadas.
No prefácio deste livro Dostoievski alega que se baseou na vida de um outro prisioneiro que deixara, após a sua morte, "um caderno volumoso, coberto de letra fina, mas inacabado, abandonado, sem dúvida, pelo seu autor" com "notas acerca dos trabalhos forçados" que vivera.
Talvez para se defender da censura de outrora, mas é muito claro que Dostoiévski escreve o livro na primeira pessoa, levando-nos com ele naquele sofrimento atroz de clausura.
Este livro é para ser lido no Inverno, num dia chuvoso e triste e não, como eu o fiz erradamente, em dias felizes de sol e mar. A liberdade do mar não é compatível com as correntes, com a tristeza, com a clausura sufocante que este livro transmite.
Senti-me penosamente agrilhoada a este livro e, só hoje o finalizo, após tantos dias de palavras aprisionadas.
Senti como é não ter liberdade, sem, de facto, a perder.
Ser-me-ia impossível dizer-te o que aconteceu à minha alma, às minhas crenças, à minha inteligência e ao meu coração no decurso destes quatro anos. Levaria muito tempo a contar. Mas a permanente concentração em mim mesmo, que me permitiu fugir à amarga realidade, deu os seus frutos. Agora tenho exigências e esperanças em que nem sequer teria pensado.
Carta de 22 de Fevereiro de 1854, dirigida ao irmão
Mas a alma, o coração, o espírito, o que lá cresceu e amadureceu, e o que lá murchou, o que foi rejeitado juntamente com o joio, não se pode transmitir nem descrever num pedaço de papel.
A liberdade, vista da fortaleza, parecia-nos mais livre do que a verdadeira, mais livre do que a liberdade tangível e real. Os forçados viam-na toda carregada de lindas cores, só lhe distinguiam o lado belo, o que é natural nos prisioneiros.
Omsk é uma feia cidadezinha, quase sem árvores. No Verão, um calor tórrido, vento e poeira; no Inverno, um vento tempestuoso. Não vi o campo. A cidade é suja, militar e dissoluta no mais alto grau.
Carta a 22 de Fevereiro de 1854, dirigida ao irmãoOmsk - a cidade que albergou o campo de trabalhos forçados - agora, no séc. XXI
Não é raro certas pessoas muito inteligentes obstinarem-se a defender paradoxos espantosos, mas quase sempre já sofreram tanto pelas suas ideias que lhes seria muito doloroso e talvez até impossível renunciar a elas.
O momento mais triste de todo o longo dia era o entardecer e o cair da noite, à luz das velas de sebo.
Deitávamo-nos cedo.
Uma lamparina trémula brilhava ao longe, junto da porta, como um ponto luminoso, mas do nosso lado a obscuridade era total.
O ar tornava-se asfixiante.
A certa altura, um doente que não consegue dormir levanta-se e fica hora e meia sentado na cama, de roupão e barrete, com a cabeça inclinada, como mergulhado nas suas reflexões.
Observo-o durante uma hora e, para matar o tempo, tento adivinhar em que pensa.
Ou então começo a sonhar, a recordar o passado.
O grande e claro quadro das recordações desenha-se, revejo certos pormenores que, noutras circunstâncias, teria esquecido ou me impressionariam muito menos. E depois imagino o futuro. Que me acontecerá, depois dos trabalhos forçados? Para onde irei? Poderei regressar à terra natal? Penso, penso tanto que a minha alma palpita de esperança...