Levantei-me com uma tremenda dor de cabeça. A agitação da véspera desaparecera e fora substituída por uma penosa sensação de espanto e tristeza como nunca experimentara. Dir-se-ia que qualquer coisa morrera em mim mesmo...
-Julga que o amo? Não posso amar uma pessoa que desprezo... Só amaria alguém que fosse capaz de me vergar, de me subjugar... mas se Deus quiser nunca encontrarei esse homem! Não me deixarei prender. Oh, não!
Passei toda a noite e toda a manhã do dia seguinte mergulhado numa espécie de torpor melancólico. Tentei estudar e abri o Kaidanov, mas em vão: as linhas espaçadas e as páginas do célebre manual desfilavam diante de mim sem transporem a barreira dos olhos. Li dez vezes seguidas esta frase: «Júlio César distinguia-se pela sua bravura nas batalhas.»
Ler pela primeira vez um grande escritor, entrar no seu mundo, percorrer-lhe as avenidas de palavras, é um tão grande privilégio como viver um primeiro amor.
Histórias de um Caçador é tão cinematograficamente imagético, que sentia o vento a roçar-me nos cabelos, o frio da água na pele, as cores do céu no olhar.
Turgueniev coloriu-me os dias cinzentos de chuva com estes seus esboços piturescos, pintados de sombras, vozes e caminhadas solitárias.
Era precisa toda a arte e tacto usados por Turgueniev nos seus escritos, para falar da servidão na Rússia sem enveredar por uma via revolucionária, nem cair em exageros cujo resultado seria desagradar ao leitor em vez de o convencer...
A sua moderação, imparcialidade, o cuidado que tem em ocultar as suas próprias convicções, como um juiz que resume os debates, dão às suas histórias um poder que a mais eloquente declamação nunca atingiria. Impregnadas de uma poesia doce e triste, deixam uma impressão mais durável do que a indignação.
Prefácio in Histórias de um Caçador de Ivan Turgueniev
A alma de Turgueniev foi marcada quer por mulheres de grande personalidade, quer por homens notáveis.
Varvara Petrovna, a sua mãe, foi a primeira mulher a transformar o seu mundo.
Proveniente de uma família obscura que enriquecera recentemente, única herdeira, geriu com mão de ferro as suas vastas propriedades e os seus 5000 servos. Três anos após ter recebido a herança, casa com Sergey Nikolayevich Turgeniev, um coronel aposentado.
Os Turgeniev descendiam de um príncipe Tatar do século XV e Sergey viu-se obrigado a casar com Varvara Petrovna para fortalecer a fortuna da sua família.
Foi uma união infeliz, com o pai constantemente envolvido com amantes e a mãe a gerir a família despoticamente como o fazia com as suas propriedades e servos.