Talvez seja a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Em nós já não temos música suficiente para fazer dançar a vida, ora aí está. Toda a juventude foi morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde havemos de sair, pergunto eu, se em nós já não há uma suficiente soma de delírio? A verdade é agonia sem fim.
E o pior é pensar como vamos arranjar forças bastantes para continuar a fazer no dia seguinte o que fizemos na véspera e em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para as diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, essas tentativas de vencer a pesada necessidade, tentativas que abortam sempre e todas destinadas a convencer-nos, uma vez mais, de que o destino é insuperável, que todas as noites temos de cair da muralha com a angústia de ser sempre mais precário, mais sórdido, esse dia seguinte.
É triste, as pessoas que se deitam, vemos bem que lhes é indiferente se as coisas correm ou não como elas querem, vemos bem que não tentam compreender o porquê de estarem onde estão. Tanto lhes faz. Dormem de qualquer maneira, são enfatuadas, são broncas, nada susceptíveis, americanas ou não. Têm todas a consciência tranquila.
Muito acima dos últimos andares, ao alto, continuava a haver dia com gaivotas e pedaços de céu. Avançávamos no clarão de baixo, doentio como o da floresta e tão pardo que enchia a rua com uma espécie de grande monte de algodão sujo.Lembrava uma ferida triste, a rua que não acabava, e nós no fundo, de uma ponta à outra, de uma dor a outra, em direcção ao fim que nunca víamos, o fim de todas as ruas do mundo.
Nova Iorque é uma cidade de pé. Já tínhamos visto cidades, pois claro, e muito belas também, e portos, e por sinal famosos. Mas entre nós as cidades estão deitadas, não é verdade?, à beira-mar ou junto dos rios, estendem-se na paisagem, esperam o viajante.
De coisas como esta é muito difícil livrar-nos. Aprendemo-las em pequenos e acabam por não ter remédio e vir-nos aterrorizar mais tarde, nos grandes momentos. Quanta fraqueza! Para nos desfazermos dela só podemos contar com a força das coisas. É felizmente enorme, a força das coisas.