Polémico e controverso à época - em 1889 - e ouso dizer, ainda hoje, A Sonata a Kreutzer é um diálogo no comboio entre dois passageiros, que mais parece um monólogo, em que abordam o casamento e as relações entre homem e mulher, de uma forma agreste, fria e desapaixonada. Todo este diálogo encerra em si as próprias opiniões de Tolstoi, desvendadas no posfácio deste livro, como se o autor criasse com ele uma cartilha sobre a arte de bem amar, a si próprio, aos outros e a Cristo.
Tenho de confessar que a leitura deste livro foi perturbadoramente obsessiva. Desde a primeira página fui levada para bem longe das ideias criadas e recriadas pelo mundo sobre a união de um homem e de uma mulher.
Neste livro tudo pode estar erradamente certo e tudo pode estar correctamente errado.
Diz-se que, quando Ludwig van Beethoven criou a Sonata a Kreutzer, na sua mente deambulava a ideia musical de um amante tentar alcançar a sua amada, não obstante a chuva, a trovoada e a lama da carruagem impedirem o seu propósito.
Mas Lev Tolstoi com a sua Sonata a Kreutzer leva este ideal romântico de Beethoven para um outro espectro de cor, mais negro, mais agreste, mais severo, mais espiritual, mais despido, mais meditativo, expondo o fluir das paixões e dos sentidos como uma futilidade cruel e um obstáculo à revelação do verdadeiro amor.
Beethoven quando escreveu a «Sonata a Kreutzer» sabia por que se encontrava naquele estado de criação, que o levava à prática de determinados actos que tinham para ele um significado. Para nós que somos levados pela música não tem significação.
Lev Tolstoi - A Sonata a Kreutzer
Beethoven - Kreutzer Sonata No. 9 in A major, Op. 47 - Liza Ferschtman, Julien Quentin
A música obriga a esquecermo-nos da nossa verdadeira personalidade, transporta-nos a um estado que não é o nosso. Sob a influência da música temos a impressão de que sentimos o que não sentimos; que compreendemos o que na realidade não compreendemos; que podemos o que não podemos. É como o bocejo ou o riso. Não temos sono mas bocejamos quando vimos alguém bocejar. Não temos vontade de rir, mas rimo-nos, ouvindo rir. A música transporta-nos, de surpresa e imediatamente ao estado de alma em que se encontrava o artista no momento da criação, confundimos a nossa alma com a dele e passamos de um estado a outro sem saber por que o fazemos.