O homem foi programado por Deus para resolver problemas. Mas começou a criá-los em vez de resolvê-los.
A máquina foi programada pelo homem para resolver os problemas que ele criou. Mas ela, a máquina, está começando também a criar problemas que desorientam e engolem o homem.
A máquina continua crescendo. Está enorme. A ponto de que talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como perfeição de ser criado, só existirá a máquina.
in A máquina está crescendo
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
Convivo com algumas (raras) pessoas que já leram Clarice, e outras que começaram a ler, depois de me ouvirem falar a respeito dela.
O que percebo, em todos os comentários, é que, até hoje, a imagem da escritora, a partir da obra dela, paira entre a melancolia e a desesperança, beirando à loucura.
Acredite se quiser, Clarice era impaciente, e, também por isso, costumava “furar filas”, na maior “cara-de-pau” mesmo, em cinemas, agências bancárias, ou aonde quer que fosse.
Quando retornou definitivamente ao Brasil, ela mesma tomava a iniciativa de recorrer a hospitais, pedindo para ser internada.
Vivia à base de tranquilizantes, os quais, certamente, não lhe tranquilizavam a alma.
Por outro lado, não demonstrava irresponsabilidade com os compromissos de casa: primeiro, a organização de almoços e jantares diplomáticos, ao lado do marido.
Com o nascimento dos filhos, sentiu-se insegura para cuidar deles sozinha, já que o marido (diplomata) viajava bastante. Apesar do “aperto” financeiro, o casal pagava “nurse” (enfermeira) para cuidar de Pedro e Paulo, inclusive educando-os.
Clarice nunca aprendeu a cozinhar, e, por isso, passou a vida inteira procurando uma “cozinheira de mão cheia”, como contava às irmãs, nas correspondências. Também, pouco envolveu-se na “criação” (educação) dos dois filhos.
Excerto de Desmitificando Clarice Lispector – O “meio do caminho”
O que é ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos.
in Ficção ou não
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
Cartão postal de Berna presente na pasta de cartas de Clarice @ www.myswitzerland.com
O que me salvou da monotonia de Berna foi viver na Idade Média, foi esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se reflectissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um de meus livros menos gostado, A cidade sitiada, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino.
Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada?
Eu ia ao cinema todas as tardes, pouco importava o filme. E lembro-me de que às vezes, à saída do cinema, via que já começara a nevar. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve - nessa hora eu me sentia pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir.
in Lembrança de uma fonte, de uma cidade
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector