Perguntava-me, há dias uma ex-aluna, se eu já tinha lido alguma coisa de Fiódor Dostoiévski.
Sendo uma pergunta perfeitamente normal, e sem deixar de acentuar o prazer de ver uma jovem de 19 anos considerar Dostoiévski um escritor fascinante, foi bastante estranho ter sido confrontado com a pergunta.
É como se um japonês, no seu país, sabendo que sou português, me perguntasse se conheço uma praia chamada Nazaré. Ou um americano, na mesma situação, se conheço um bolo chamado pastel de nata.
Fila para o Teatro Plaza onde a peça de Somerset Maugham "A Carta" estava em exibição. 1930
Foto London Express/Getty Images
Maugham era um apaixonado pelo teatro, acima de tudo como espectador.
Nas minhas deambulações pela sua biografia imagino-o a tornar-se dramaturgo apenas pelo privilégio de assistir a peças que a sua imaginação gostaria de ver encenadas para si próprio. Aliás, como dramaturgo ganhou esse raro privilégio de se tornar no primeiro espectador das suas próprias peças.
Adorava sentar-se numa cadeira, na escuridão da plateia ainda vazia, a assistir aos ensaios, sem interferir, em silêncio, a usufruir dos sussurros, das idas e vindas, dos almoços apressados no restaurante da esquina onde confraternizava com algumas pessoas do elenco e do chá das quatro que a funcionária da sala lhe trazia pontualmente ao lugar onde estava sentado.
O único momento em que sentia a ansiedade a invadi-lo era na primeira noite de exibição.
Maugham sofria horrores:
I tried to go to my own first nights as though they were somebody else's, but even at that I found it a disagreeable experience...
Indeed I should never have gone to see my plays at all, on the first night or any other, if I had not thought it necessary to see the effect they had on the audience in order to learn how to write them.
Poeta da terra, do corpo das coisas, Cecília trabalha com a matéria da natureza e da História, reinventa o chão de personagens célebres e anônimos, fala de dentro dos lugares por onde passa, que são muitos: de Montevidéu a Karachi, de Nova York a Nova Délhi, de Jerusalém a Buenos Aires, países da Europa, ilhas do Atlântico. De tudo, Cecília inquire o tempo: dos homens e suas cidades, de seus parques, suas casas, seus portos, seus monumentos, suas ruínas, suas flores. De tudo e de todos se fazendo próxima sendo alheia.
Poeta das águas, frequentemente. Do estado fluido da memória e dos sonhos, das viagens contemplativas, da lágrima melancólica, das navegações no espaço e no tempo, do mar na tradição da lírica portuguesa. Poeta das águas no que elas têm de musical, originário, onírico, ancestral, profundo ou especular. Cecília canta o Mississippi, o Tejo, o Nilo, o Ganges. Canta “o caminho dos navegadores, juncado de saudades, prantos”, o “marinheiro de mil tormentas”, os barcos da Holanda, a chuva sobre os templos e as árvores, a chuva sobre o mar.
Poeta do fogo? Não de um fogo selvagem ou apoteótico – embora em sua poesia o leitor encontre Roma ardendo ou os clarões da fogueira de Joana d’Arc –, mas uma poeta de fogo lento, de uma inteligência paciente, solidária, construtiva, interessada nas transformações de sua época. É a parte revolucionária de Cecília, ativa no movimento das reformas pedagógicas na década de 1930, coordenadora da Página de Educação no Diário de Notícias, pioneira na criação de uma biblioteca infantil (três anos depois extinta pelo Estado Novo), no Rio de Janeiro, em incansável diálogo com poetas de outras partes do mundo, como Rabindranath Tagore, Jules Supervielle, Gabriela Mistral. Esse fogo é também a parte solar de uma presença amiga entre seus pares, uma alegria convivial, uma energia empenhada no estudo das artes, do folclore, das línguas e das religiões.
Sobretudo, uma poeta do ar. Poeta dos ventos, do hábitat natural das orações, dos louvores e da palavra cantada, do espírito que se infunde nas coisas e as anima, da atmosfera de cada lugar visitado, do Oriente ou Ocidente. “Pastora de nuvens”, fugidia como seu pasto. Poeta do ar no que nele há de alento, sopro vital, presságio, movimento invisível acima das fronteiras, poeira suspensa no tempo, Eclesiastes. Cecília canta “os ventos de agosto, levando tudo”, a “gente da névoa, apenas murmurada”, a brisa que “penteia / a verde seda fina do arrozal”, e se pergunta: “– Pássaro que pelo ar deslizas, / que pensamentos são os teus?”..
Mariana Ianelli in Da terra, da água, do fogo e do ar
As leituras levam-me sempre por caminhos inesperados e, de vez em quando, deixo livros a meio. São raros aqueles que não li completamente, porque a eles sempre volto para os concluir e fechar a última página.
Um desses casos é The Secret Lives of Somerset Maugham de Selina Hastings que deixei a meio para perseguir Eliot, Duras, Clarice e Cecília. A biografia de Maugham, apesar de temporariamente esquecida, regressa pouco a pouco às minhas leituras.
Maugham não é e dificilmente será um dos meus autores favoritos, mas a vida dele agrada-me, por mais que não seja, por puro entretenimento.