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Livrologia

Livrologia

30
Jun19

Sem aviso

Tanta coisa que então eu não sabia.

Nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol duro das três horas. Também não me tinham avisado sobre este ritmo tão seco de viver, desta martelada de poeira. Que doeria, tinham-me vagamente avisado. Mas o que vem para a minha esperança do horizonte, ao chegar perto se revela abrindo asas de águia sobre mim, isso eu não sabia. Não sabia o que é ser sombreada por grandes asas abertas e ameaçadoras, um agudo bico de águia inclinado sobre mim e rindo. E quando nos álbuns de adolescente eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava; isso eu tive que saber sozinha.

Também não sabia no que dá mentir. Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso - já atordoada eu sentia - isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.

A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector

30
Jun19

Não é fácil escrever em português

clarice.jpg@ www.pinterest.pt

 

Asseguro-vos que não é fácil escrever em português: é uma língua pouco trabalhada pelo pensamento e o resultado é pouca maleabilidade para exprimir os delicados estados do ser humano.

in Minha próxima e excitante viagem pelo mundo

A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector

29
Jun19

Gata Borralheira ou Cinderela?

logo.jpgNão quero para já fazer qualquer paralelismo entre este conto de Sophia e o conto popular que todos conhecemos e que são muito diferentes na sua aparente semelhança.

Creio que é uma daquelas raras oportunidades de escrever sobre um dos contos mais contados, mais lidos e mais sonhados na história da literatura infantil.

Mas por agora vamo-nos centrar no título que tanta confusão tem lançado nos pequenos leitores ao longo de séculos de deslumbramento.

O conto Gata Borralheira é também referido como Cinderela.

Ingenuamente convencida que as capas definiam os livros que lia, durante a minha infância acreditei serem histórias distintas, porque muitas vezes as versões da história não coincidiam, apesar dos finais serem muito semelhantes. 

A versão mais antiga é originária da China, datada de 860 a.C., tendo sido ocidentalizada pelo italiano Giambattista Basile  - La gatta cenerentola - e foi neste conto que Charles Perrault e os Irmãos Grimm se basearam para escreverem as suas próprias versões, que me levaram erradamente a acreditar que se tratavam de histórias distintas. A título de exemplo, a versão da Disney de 1950 é bastante fiel à de Perrault.

Como viria a descobrir mais tarde ambas as designações estariam correctas, visto que surgiram das traduções que foram efectuadas.

As palavras cenerentola (italiana, versão de Giambattista Basile La gatta cenerentola)cendrillon (francesa, versão de Charles Perrault Cendrillon), cujos significados remetem para "pequenas cinzas", deram origem a cinderela.

A palavra borralheira deriva de borralho, "brasido coberto com a própria cinza", visto que a personagem principal era assim descrita, como estando suja de cinzas, devido aos trabalhos domésticos que fazia.

Esta significação, a de uma mulher que vem das cinzas, é importante não só na simbologia da história, mas também no próprio conceito social que se generalizou, demasiadas vezes extrapolado e deturpado, mas sobre isso escreverei mais adiante, enquanto me embrenho no conto de Sophia.

29
Jun19

Espelhos

Não se veja nesse espelho.

(...)

Sabe... é preciso não dar importância a este género de espelhos. São como as pessoas más, não dizem a verdade.

História da Gata Borralheira - Sophia de Mello Breyner Andresen

in Histórias da Terra e do Mar

Pág. 1/10

Quanto mais leio menos sei
Tudo o que escrevi para o Desafio de Escrita dos Pássaros está aqui!
Já começou a viagem pelo mundo da Gata Borralheira.
Cinema e literatura num só.
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