Ela pensa o leque e com o leque se abana. E com o leque fecha de súbito o pensamento num estalido, vazia, sorridente, rígida pela cinta apertada, ausente. O leque distraído e aberto no peito. «Também sei, elas arranjarão casamento», concorda ela como visita que é recebida na sala de visitas. Mas num alvoroço controlado, eis que se abana com mil asas de pardal.
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço.
Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco.
in A lucidez perigosa
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
Maury e Clarice no vulcão Vesúvio @ polivanda.blogspot.com
Em 1957 o casamento com Maury começa a mostrar os primeiros sinais de ruptura.
Os porquês do fim do casamento de Clarice não são conhecidos.
Seria importante conhecê-los?
Aos fins raramente lhes resta sentidos e, se os há, serão por razões que a própria razão desconhece.
Numa das suas crónicas - O Estado Atingido - talvez aponte a suprema razão de todas:
Depois da época de palavras de amor, de palavras de raiva, de palavras, as relações entre os dois tornaram-se aos poucos impossíveis de resultar numa frase ou numa realidade clara. À medida que estavam casados há tanto tempo, as divergências, as desconfianças, certa rivalidade jamais chegavam à tona, embora elas existissem entre eles como o plano dentro do qual se entendiam. Esse estado quase impedia uma ofensa e uma defesa, e jamais uma explicação.
Formavam o que se chama um casal comum.
Esta crónica poderia ter sido uma confissão íntima ou uma mera observação casual, nunca o saberemos. O que sabemos é que a Clarice desconfortavam-na as constantes viagens para o estrangeiro, a lonjura do Brasil e da sua língua, os laços quebrados com amigos e familiares e o papel que interpretava de esposa comum nos eventos diplomáticos que a entediavam.
A vida nómada e o mundo diplomático nunca foi muito do agrado de Clarice.
Quando o seu filho Pedro foi diagnosticado com esquizofrenia, o seu mundo ficou ainda mais do avesso. Os episódios agressivos, frequentes e complicados, provocaram à escritora uma grande dor e um sentimento de culpa sem fim. Perturbou-a mais do que esperara.
A viver já numa angústia profunda e num cansaço psicológico insuportável, em 1959 separa-se de Maury.
Regressa ao Brasil com os dois filhos
Maury ainda tentaria, através de uma carta enviada de Washington, a reconciliação que, contudo, não viria a acontecer, iniciando-se assim um longo processo de separação conjugal.
The true writer, he does not write to get published. He writes because he has something urgent and personal that he needs to say.
A writer must write, as he must breathe and he keeps on doing it, despite the loneliness, despite the poverty, despite the piles of rejection letters, despite the parent or the wife who call out "you fool, why don't you get a real job?"
A writer writes because if he does not, his soul will starve.
Até que ponto terá sido compreensível para ele mesmo o seu próprio ato de renúncia do mais alto cargo?
Mal posso imaginar o seu desarvoramento solitário. Quando um ato irracional provoca monstruoso eco, o homem provavelmente se sente quase inocentado diante daquilo que seu grito provocou: de vibração em vibração, o desabar da avalancha. A verdade de sua demissão ele mesmo não sabe, talvez nunca saiba, pois já se afogou sob os pretextos e explicações. Ele foi pessoal, o que é crime num homem público.
O sacrifício de um líder ou de um santo ou de um artista - que chegaram àquilo que são exatamente por terem sido de início altamente pessoais - o seu sacrifício é o de não o serem mais. A cruz deles é esquecer-se de sua própria vida.
(...)
Mas aquele homem público se restringiu a si mesmo. Da grandeza dos defeitos humanos ele fez defeitos mesquinhos. Criminoso por pequenez. Era um homem a ser guiado, não a guiar.
in Lembrança de um homem que desistiu
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector