- Sente-se a vida a palpitar, não sente? - disse entusiasmado.
- Sabe, acho que não consigo ficar aqui muito mais tempo. Quero ir para Londres para poder realmente começar. Quero experimentar coisas novas. Estou farto de me preparar para a vida: agora quero vivê-la.
O vestido é a persona da Gata Borralheira, a ponte entre o seu mundo interior e o mundo que a observa, uma espécie de máscara projectada para fazer uma impressão definitiva sobre os outros e para dissimular a sua verdadeira natureza.
No caso de Lúcia, a madrinha emprestou-lhe um vestido que era feio, antiquado e lilás. O vestido, em vez de celebrá-la, matava-a e a cor lilás, um paramento fúnebre que a envolvia, simbolizando a sua condição já morta num mundo onde ela jamais seria aceite. E foi o vestido que provocou a sua derradeira decisão:
Tenho de escolher outro caminho. Um dia hei-de voltar aqui com um vestido maravilhoso e com sapatos bordados de brilhantes.
Aquele baile, aquela gente que a ignorara e humilhara era o mundo que ela decidira escolher. Aqueles eram os vestidos, os sapatos, as jóias que ela queria possuir. Aquele o poder que desejava.
História da Gata Borralheira - Sophia de Mello Breyner Andresen
Mas algo nela hesitava: deixar a sua casa, aqueles que a amavam, deixar a doce liberdade familiar - entre a aérea distracção do pai, os irmãos descendo como bólides pelo corrimão, o desleixo das criadas velhas, os quartos onde o papel se descolava da parede, a sala onde a seda dos cortinados se esgarçava e trocar tudo isso, que era quente, vivo e livre, pela minuciosa tirania da tia rica e pelos seus discursos de prudência e cálculo, era difícil.
Mas ela não queria renunciar ao outro caminho.
História da Gata Borralheira - Sophia de Mello Breyner Andresen
Das três mulheres que me deram a conhecer Manuel Bandeira através das suas páginas, já tinha revelado duas delas: Cecília Meireles e Clarice Lispector.
Chegou o momento de revelar como Sophia me desvendou Manuel Bandeira.
Sophia amava tanto a poesia que sempre leu outras poetisas e poetas.
Chegou a escrever um ensaio sobre Cecília Meireles - A poesia de Cecília Meireles - onde revela que "falar de um poeta é como querer apanhar água com as mãos. Prendemos só as nossas próprias palavras, enquanto o poeta nos foge. Só em poesia se pode falar de poesia".
E foi assim que Sophia me contou sobre Manuel Bandeira e como era imperativo lê-lo, através de um poema:
Este poeta está Do outro lado do mar Mas reconheço a sua voz há muitos anos E digo ao silêncio os seus versos devagar
(...)
Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó Quando em manhãs intactas e perdidas No quarto já então pleno de futura Saudade Eu lia
(...)
Estes poemas caminharam comigo e com a brisa Nos passeados campos de minha juventude Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro E foram parte do tempo respirado.