Quando Marega recusou permanecer em jogo e abandonou o campo, após ter sido alvo de insultos racistas por parte de adeptos do Vitória de Guimarães, houve várias vozes dissonantes que não chegaram ao céu. Como as vozes de burro.
Abandonar o campo ou permanecer nele não teriam sido actos de heroísmo.
Permanecer e ignorar o extremo racismo de que estava a ser alvo teria sido um acto derrotista de submissão.
Abandonar o campo foi um acto de afirmação da dignidade que merece como ser humano.
Se insultos racistas não são racismo, então o que é racismo afinal?
Relativizar questões importantes é um desporto nacional tão ou mais importante que o futebol em Portugal.
Ao relativizar a pobreza, o machismo, a xenofobia, o racismo e muitos mais -ismos que a sociedade portuguesa considera "um exagero", tenta-se aniquilar questões sobre as quais ninguém quer debater e resolver, porque para isso haveria que aceitar que elas existem. E os portugueses adoram a evasão, evitando a todo o custo o confronto com as questões essenciais da própria sociedade. Esta evasão é designada como "tolerância". É assim que os portugueses se consideram: tolerantes. Para isso, basta calar as questões, mesmo que elas existam.
O racismo tem espectro?
Podemos ser pouco, assim-assim ou muito racistas?
Mandar alguém de outra cor "voltar para a terra deles" provavelmente deve ser uma espécie de racismo "tolerante", assim-assim.
O racismo português é como uma galinha, uma espécie de pássaro que não voa, que cacareja, mas que, na realidade, é o parente mais próximo do T-Rex.
O dia mais utópico da minha vida é o futuro, o imaginário dos meus desejos, indomável perante qualquer realidade que se queira impôr. E se nesse dia os meus desejos se concretizassem, nenhum deles seria meu.
Talvez acordasse para a descoberta do sentido da vida. Talvez assistisse ao fim da alienação humana e ao fim da guerra e do egoísmo.
E estes meus desejos, tão profundamente humanos, não levariam à desumanização da própria humanidade?
O que seria da humanidade se nela abundasse senso comum e espírito crítico?
Como viveria ela sem crueldade ou injustiça humana?
Como viveria um ser humano na sua própria impossibilidade?
Se Deus acordasse do seu sonho, que é a nossa realidade, e despertasse para esta utopia, veria a realidade impossível que Ele jamais conseguiria criar.
Talvez fosse um dia absurdo, o fim supremo de todos os fins, o dia em que o nada não poderia buscar o tudo.
Nós, os anões, vivemos quinhentos anos e assim temos tempo de ver muito, ouvir muito, pensar muito. E temos uma grande memória.
Quando somos novos, os velhos anões contam-nos tudo quanto viram, durante os cinco séculos da sua vida. E também nos contam tudo quanto os pais deles lhes ensinaram. Ora um anão que ouve uma coisa fica a sabê-la de cor para sempre.
O nevoeiro da noite ainda não se tinha levantado e tudo estava envolvido numa grande nuvem branca e suspensa. As árvores pareciam flutuar e o fundo dos caminhos não se via. O ar estava maravilhosamente perfumado a Outono, a maçã e a alecrim.
Pediu-lhe que calçasse o sapato. Então Sheh Hsien vestiu-se com o belo vestido azulado, pôs os sapatos e apresentou-se ao rei.
~ Sheh Hsien ~
A variante d' A Gata Borralheira na China intitula-se Sheh Hsien. Surge num livro - Yu Yang Tsa Tsu - do século IX e é um dos contos d' A Gata Borralheira mais antigos que se conhece.
Há dois pormenores que achei interessantes nesta variante.
Um deles é a não existência de uma fada-madrinha, mas de um peixe. Na mitologia chinesa o peixe é um símbolo de prosperidade e abundância e, neste conto, são os ossos do peixe que concretizam os desejos de Sheh Hsien:
Se quiseres algo, só tens de pedir aos ossos. O teu desejo será realizado.
O segundo é o modo como procuram pelo pé que calçava o sapato perdido:
O rei pediu aos súbditos que o experimentassem, mas o sapato era uns bons três centímetros demasiado curto; então ele pediu a todas as mulheres do reino que o calçassem, mas o sapato não servia a nenhuma.
Era leve como uma pena e não fazia barulho mesmo ao andar sobre pedra.
No dia seguinte a filha veio à lagoa mas o peixe não estava lá e ela foi chorar para o monte.
De repente, uma entidade com cabelo desalinhado e roupa grosseira desceu do céu e consolou-a dizendo: «Não chores. A tua mãe matou o teu peixe. Os ossos dele estão debaixo da pilha de estrume. Vai lá, apanha os ossos do peixe e esconde-os no teu quarto. Se quiseres algo, só tens de pedir aos ossos. O teu desejo será realizado.»
A moça seguiu o conselho e obteve ouro, pérolas, vestidos e comida sempre que os quis.
in Sheh Hsien (variante chinesa d' A Gata Borralheira)
Gata Borralheira e Contos Similares de Francisco Vaz da Silva
Mário de Andrade e Manuel Bandeira trocaram cartas durante vinte e dois anos. Nessas cartas há debates profundos sobre uma diversidade de temas, inclusivé sobre as suas próprias poesias.
Mário de Andrade enviava os seus poemas a Manuel Bandeiraa para obter o seu parecer crítico e nessa troca epistolar discutiam sobre o "fazer poético", revelando em desabafo como era árduo escrever poesia.
As cartas destes dois amigos revela um processo de criação partilhada em que a amizade ascende a um plano humanamente divino, superior ao acto criador, superior à própria poesia.
Sobre Pauliceia Desvairada, Manuel Bandeira viria a confessar:
Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Álvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade.
Em 1921 Mário veio ler aqui sua “Pauliceia Desvairada”.
Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado.