Este instante da minha estante é especial e, por isso, mais longo que os pequenos instantes que geralmente partilho. Longo não só em tempo, mas também em distância.
Fui à Feira do Livro, mas este ano troquei Lisboa pelo Porto, num regresso às raízes, num mergulho muito aguardado nas páginas pelas quais tanto esperei abrir, ali presente, inteira, de pés no chão, em carne e osso.
A espontaneidade e o calor das gentes do norte - que são também os meus - que em mais nenhum lugar se encontra, enrolaram-se em mim num arrepio da falta que me fazem. E a pronúncia do norte, que saudade!
Os Jardins do Palácio de Cristal têm a magia de outras eras e perdemo-nos propositadamente pela sua geografia para nos reencontrarmos com o Douro.
São jardins de encantar, com os faisões a caminharem ao nosso lado e o vento a dispersar as páginas dos livros, ansiosos por um leitor que os leve.
Sei que os leitores estão felizes por se verem frente a frente com os seus livros, enfim reunidos, capa e mãos, extasiados, e que achavam perdidos.
À medida que o tempo passava, mais insustentável o peso que me marcava o ombro pela quantidade de livros aos quais não resisti.
Um dos homens que mais marcaram o crescimento da poeta viria a ter, ele próprio, uma infância peculiar.
Tomás Maria António d'Assis e de Borja de Mello Breyner nasce na madrugada de 2 de Setembro de 1866 na Rua da Costa do Castelo, n.o 42. Chegado depois da morte de dois irmãos num mesmo ano, vítimas de difteria, doença que no final do século XIX matava mais de metade dos contagiados (até ao aparecimento da vacina), é recebido como uma bênção.
Quando, aos três anos, sofre de uma febre cerebral, os pais tornam-se excessivamente protectores. Preocupado em tirar o máximo partido de um futuro que podia não ter chegado a acontecer, depois de resolvido esse susto maior, o pai de Tomás decide que o menino teria falta de «muito de comer e nenhuma instrução»
Fica assim justificada uma vida sem obrigatoriedade de estudos e, mais importante, recheada de um convívio com acontecimentos de adultos nada comum para uma criança na época. Tomás seguirá os pais - que não o queriam perder de vista - para todo o lado. Tal incluía convívios com a realeza e brincadeiras com os príncipes D. Carlos e D. Afonso, de quem era amigo.
Certa vez, no Palácio da Ajuda, Tomás de Mello Breyner sofre com o gozo das crianças mais aristocráticas do que ele, por aparecer com fato de carnaval de tecido menos nobre e não usar colónia. É a própria rainha D. Maria Pia que vem em seu socorro, encharcando-o no seu melhor perfume. Grato pelo refúgio real, Tomás registou mais tarde a memória desse dia nos seus diários. E, claro, nunca deixaria de ser um monárquico convicto.
Como a criança fosse, afinal, crescendo saudável, impunha-se a normalização da sua vida. Termina a primeira instrução apenas aos 14, mas em três anos em vez de cinco. Embora tendo entrado tarde na vida do jovem doente (que deixou de o ser), a escolaridade parece ter agradado ao filho protegido. Estuda Medicina, especializa-se em doenças venéreas e torna-se médico da casa real logo em 1893, responsabilidade que mantém até ao final da monarquia.
O mimo e as atenções com que foi abonado durante a doença grave que o atingiu fizeram dele um homem carinhoso e especialmente atento aos outros.
«Particularmente é o melhor dos rapazes. Possue a nobre e santa faculdade de se admirar sinceramente, é d'estes a quem um bello verso, uma figura elevada, uma acção grande fazem humedecer os olhos de ternura. No sentir tem a mais absoluta indiferença pelo pedantismo triunfante, a mais rija indignação só lhe vem deante do egoísmo burguez. É uma espécie de Flaubert educado, tal como o descreveu o grande Eça.»
Sousa Martins sobre o avô de Sophia, Tomás de Mello Breyner, 1897
O avô de Sophia foi dos primeiros estudiosos de maleitas femininas numa época em que a sexualidade era ainda motivo de segregação e preconceitos, não se apoquentando com o nome pouco aristocrata da sua especialidade. Oficialmente das doenças venéreas, o serviço hospitalar que organiza desde 20 de Março de 1897 para vítimas de sífilis e de padecimentos sexualmente transmissíveis rapidamente se torna conhecido como consulta das «moléstias vergonhosas».
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
- No alto das montanhas dos Andes há cidades abandonadas, onde só vivem águias e serpentes disse outra andorinha.
- Que maravilha! Contem tudo - pediu Oriana.
- Não se pode contar tudo - responderam as andorinhas. - As maravilhas do mundo são tantas, tantas! Mas vem connosco, Oriana. Quando vier o outono nós partimos. Tu também tens duas asas. Vem connosco.
Mas Oriana olhou o vasto céu redondo e transparente, suspirou e respondeu:
- Não posso ir. Os homens, os animais e as plantas da floresta precisam de mim.
- Mas tu tens duas asas, Oriana. Podes voar por cima dos oceanos e das montanhas. Podes ir ao outro lado do Mundo. Há sempre mais e mais espaço. Imagina como seria bom se viesses. Podias voar muito alto, por cima das nuvens, ou podias voar rente ao mar azul, mergulhando a ponta dos teus pés na água fria das ondas. E podias voar por cima das florestas virgens e respirar o perfume das flores e dos frutos desconhecidos. Vias as cidades, os montes, os rios, os desertos e os oásis. No meio do Grande Oceano há ilhas pequeninas com praias de areia branca e fina. Ali, nas noites de luar, tudo fica azul, parado e prateado. Imagina estas coisas, Oriana.
Abandonado pelo capitão na Ribeira ou fugitivo de um navio comandado por um dinamarquês a que a sua guelra adolescente não queria submeter-se, com apenas 14 anos, Jan vê-se apátrida, sem casa nem família, num país de língua estranha, costumes católicos e gentes de tez morena.
Com tanto de aventuroso, como de temerário. Nem por isso demora a encontrar aquilo que procurava ou aquilo que o destino lhe ofereceu para procurar - trabalho e oportunidades de negócio.
Porque o garoto fosse despachado, soubesse algum inglês, com lições estudadas enquanto trabalhava no campo, ou atraentemente exótico nos seus olhos azuis e cabelos claros, rapidamente consegue o apoio de um comerciante da Ribeira, que lhe dá um primeiro trabalho como ajudante numa loja de candeeiros na Rua de São João.
A venda em vários pontos da cidade abre-lhe as portas para outras mercancias entre as duas margens do rio Douro. O vai e vem de gentes e mercadorias num dos portos mais movimentados do país depressa lhe sussurra ideias altaneiras, logo permitindo a expansão do circuito até a Galiza e à Alemanha.
Inicialmente com laranjas de Setúbal e cortiça, depois vinho e cereais, provavelmente o principal negócio nos primeiros tempos. Bastou um ano para adquirir uma embarcação à vela, que lhe permitiu investir na aquisição de uma quinta na Régua, para produzir os seus próprios vinhos do Douro." Dos armazéns de vinho do Porto na Ribeira de Gaia à tanoaria e destilaria foi só mais um rasgo de empreendedor. Jan torna-se um homem de negócios dedicado à compra, venda e transporte de mercadorias entre a Europa e a América, abrindo uma firma em Manaus, no Brasil, que tornará mais ágil a exportação de vinhos.
No outro lado do Atlântico dedica-se ao comércio de borracha e cria uma carreira a vapor no rio Amazonas. É assim que escassos cinco anos depois de desembarcar no cais da Ribeira, e com apenas 19 anos, cria a Companhia de Vinho do Porto Andresen, ainda hoje existente, embora há muito entregue a outros proprietários.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
Enquanto esperava começou a conversar com as andorinhas:
- Os países distantes são maravilhosos - diziam as andorinhas.
- Contem, contem - pediu Oriana.
- O rei do Sião tem um palácio com um telhado de oiro e na China há torres de porcelana - disse uma andorinha. Na Oceânia há ilhas de coral cobertas de relva e palmeiras. E nessas ilhas as pessoas vestem-se com flores e são todas bonitas, boas e felizes - disse outra andorinha.
- Os cangurus têm uma algibeira para guardar os filhos e o rei do Tibete sabe ler o pensamento de todos os homens - disse outra andorinha.