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Ditou a natureza que 2020 seria o ano do seu grito.
Um basta! que obrigou o mundo inteiro a parar para reflectir.
2020 foi o ano em que a humanidade adoeceu, morreu e a natureza ganhou saúde, renasceu.
Foi também o ano da perplexidade humana, um ano interessante do ponto de vista sociológico e psicológico, em que o ser humano deixou cair a máscara, apesar de ter de usar uma diariamente, revelando a sua humanidade ou a falta dela nestes tempos difíceis. As certezas que tantos tinham ruíram, desfazendo-se em pó. As certezas de quem eram, seguiram o mesmo caminho.
Fala-se muito do regresso à normalidade, mas não sei de que normalidade se fala, que conceito será esse. Talvez todos queiram regressar à mesma normalidade que consideravam normal e que, afinal, talvez não o fosse.
Se vai ficar tudo bem?
Importa é ficarmos bem, porque a saúde continua a ser um dos bens mais preciosos.
Em 2020 ficará na minha memória uma imagem que nunca esquecerei: todas as manhãs em que conduzi para o trabalho, em estradas completamente desertas, sem avistar uma alma humana, debaixo de um silêncio ensurdecedor e apocalíptico.
Nessas manhãs, apesar de sentir que o mundo estava a acabar, nunca vi o céu tão bonito, nunca respirei um ar tão puro, nunca tinha sentido o silêncio assim.
Foram estes momentos cataclísmicos que me marcaram com a sua dualidade de grande beleza em plena destruição.
Metas de leitura com base no número de livros lidos não é e nunca será o meu objectivo. Na leitura não gosto de quantificar, mas de qualificar, porque leio, acima de tudo, pessoas e não meros objectos.
E é delas que é feito o meu balanço livresco de 2020, pessoas que escreveram histórias e poemas, pessoas com quem passei os meus dias.
Com elas vivi, passeei, acordei, adormeci. Com elas os dias de 2020 tornaram-se mais bonitos, apesar de tudo o que ia acontecendo no mundo.
Das arestas exactas dos versos da poesia russa às florestas ondulantes de Sophia, do sol aconchegante de Cecília à paixão exacerbada de Mário de Andrade, dos muitos amores de Vinicius à sentimentalidade de Manuel Bandeira.
Em 2020 decidi trazer mais calor e ritmo brasileiros às minhas leituras, porque o que li em 2020 não foi uma coincidência, mas um meio de sobrevivência aos tempos que vivemos. A literatura brasileira trouxe o sol, o espaço e a alegria que faltaram aos nossos dias.
Vi-me obrigada a adiar o ciclo de leitura de Jorge de Sena para 2021. Devido aos constrangimentos provocados pela pandemia foi impossível ter os seus livros na minha estante. A boa notícia é que está tudo preparado para que a leitura de Sena aconteça em 2021.
Com esse adiamento, prolonguei um pouco mais o ciclo de leitura de Sophia, já finalizado e de quem já tenho muitas saudades. A ela regressarei no ciclo de leitura de Sena, quando escrever sobre a forte amizade que os uniu.
E neste adeus a 2020 aqui ficam os nomes que me acompanharam ao longo destes doze meses que nunca me pareceram tão longos:
Os portugueses:
Sophia de Mello Breyner Andresen
Os brasileiros:
Os russos:
(1787-1855) Konstantin Batyushkov
(1792-1878) Prince Pyotr Vyazemsky
(1797-1846) Wilhelm Küchelbecker
(1800-1844) Yevgeny Baratynsky
De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada vale ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus
Excerto do poema O Increado
in Forma e Exegese de Vinicius de Moraes
(1935)
Leslie Caron
An American in Paris, 1951
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente
calmas.
Excerto do poema O Increado
in Forma e Exegese de Vinicius de Moraes
(1935)
O meu desejo neste Natal para todos nós,
é que a distância
não impeça o abraço apertado,
coração contra coração,
de quem amamos
e por quem esperámos tanto tempo para ver.
Feliz Natal!
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
in Cancioneiro de Fernando Pessoa
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