No posfácio de A Escrava que não é Isaura Mário de Andrade decide escrever em nome próprio sobre a mudança de algumas das ideias que partilhara no livro que escrevera em 1922, mas que viria a publicar apenas em 1924.
A prova de que no Modernismo há espaço para a evolução e que evoluir pode ser um passo atrás ou ao lado:
Confesso que das horas que escreveram esta Escrava em abril e maio de 22 para essas últimas noites de 1924 algumas das minhas ideias se transformaram bastante. Duas ou três morreram até. Outras estão mirradinhas, coitadas! Possível que morram também. Outras fracas desimportantes então, engordam com as férias que lhes dava. Hoje robustas e coradas. E outras finalmente apareceram.
Que aconteceu?
Este livro rapazes, já não representa a Minha Verdade inteira da cabeça aos pés. Não se esqueçam de que é uma fotografia tirada em abril de 1922. A mudança também não é tão grande assim. As linhas matrizes se conservam. O nariz continua arrebitado. Mesmo olhar vibrátil, cor morena.
Será possível forçar a perfeição a surgir para as artes? Saltar a evolução para que as obras atuais ganhem em serenidade, clareza, humanidade? Escrevemos para os outros ou para nós mesmos? Para todos os outros ou para uns poucos outros? Deve-se escrever para o futuro ou para o presente? Qual a obrigação do artista? Preparar obras imortais que irão colaborar na alegria das gerações futuras ou construir obras passageiras mas pessoais em que as suas impulsões líricas se destaquem para os contemporâneos como um intenso, veemente grito de sinceridade?
in A Escrava que não é Isaura (1925) de Mário de Andrade
Mário de Andrade escreveu A Escrava que não é Isaura como uma forma de legitimar o Modernismo, um manifesto da nova estética poética contra os cânones da poesia tradicional, mas a meu ver é muito mais do que isso, visto que podemos encontrar reflexões sobre a arte, a beleza, o processo criador e até sobre si próprio.
Com uma tiragem de 1.000 exemplares, o livro foi distribuído pelos amigos, conhecidos e por algumas livrarias, limitando-se a sua distribuição a um grupo artístico restrito. Talvez não tivesse sido essa a intenção de Mário de Andrade, visto que o propósito deste livro nasceu da necessidade de esclarecer as bases do Modernismo a quem não estava ligado a este novo movimento:
A minha Escrava que não é Isaura, já em impressão. É um trabalho muito velho. Tem dois anos e tanto. Isso pra evolução rapidíssima em que vamos é uma existência inteira. Creio que ainda poderá ser um pouco útil aos moços do Brasil e é só por isso que o faço imprimir.
Somos homens duma imaginação dominadora quase feroz. Inegável. Apesar disso: críticos, estudiosos, esfomeados de ciência, legitimamente intelectuais. Donde vem pois esse estado de cisma contínua, exaltada ou lassa, que apresentam muitas vezes as criações dos poetas modernistas senão da fadiga intelectual?
in A Escrava que não é Isaura (1925) de Mário de Andrade
A nove páginas do fim dest' A Escrava que não é Isaura que tem acompanhado os meus dias friorentos e, antes de ler a última página, queria desmistificar a coincidência (ou a não coincidência) deste título com o do livro de Bernardo Guimarães A Escrava Isaura.
Aliás, não há coincidência, mas um propósito de Mário de Andrade ao intitular este seu livro com uma analogia à obra de Bernardo Guimarães.
A Escrava Isaura surgiu em 1885, oito anos antes do nascimento de Mário de Andrade que, ao escrever a sua Escrava que não é Isaura, nunca teve qualquer intenção de criticar ou comentar a obra de Bernardo Guimarães.
O único ponto que os une é o conceito de escravidão, em que para Mário de Andrade a escrava é a poesia, por isso não é a Isaura, a mulher, como foi para Bernardo Guimarães.
Aliás, Mário de Andrade na sua parábola, que consta das primeiras páginas do livro, compara a poesia com Eva, a primeira mulher bíblica.
Segundo ele, o primeiro homem, depois da criação de Eva, plagia Deus tirando da língua uma mulher que ficou nua no topo de um monte. Adão envergonhou-se da sua nudez e colocou-lhe uma parra. Depois passou Caim e cobriu-a com um “velocino alvíssimo”.
As gerações seguintes continuaram a exacerbá-la com vestes e adereços inúteis até que um dia passa um vagabundo, Rimbaud, que dá um pontapé no monte, onde estava Eva (a poesia), e fá-lo desmoronar. E assim surgiu a poesia em toda a sua nudez e esplendor, a mulher "escandalosamente nua" que os poetas modernos começaram a reverenciar.