Deixemos cruzarem-se ideias perdidas
e o amor não amado e o tempo que o venceu.
Estando as minhas mãos e pousas nos meus dedos.
Os meus dedos são meus, apenas meus,
qualquer que seja, neles, a contemplação.
Excerto do poema O Amor não Amado
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
Não sei por que ainda falo em Deus.
Se de mim me afasto e obedeço ao mundo
Resolutamente me esvazio de tudo,
como o silêncio impossível de um ventre gerando,
e não há desespero que eu não abandone.
Ou mágoa que eu não enfureça para a abandonar.
Que vontade me encobre, pois, o termo de um desejo?
Ainda hoje, meu Deus,
há um amor que me cega
no momento em que olhar seria ganhar tempo.
Excerto do poema O Amor não Amado
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
Oh Deus! que um dia adormeceste nos meus braços
(e do teu sono fiz tantos sinais de poemas):
algum de nós, será o que ficar do outro,
algum de nós, bem preso à liberdade incrível
de não raiar senão quando há silêncio,
virá trair o adeus que nos demonstra o mundo.
Excerto do poema Catecismo
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
Os pais de Jorge de Sena tinham origens da alta burguesia: o pai de linhagem aristocrata e a mãe descendente de comerciantes bem sucedidos.
Maria da Luz Grilo conhece Augusto Raposo de Sena num navio com destino a Angola, momento descrito por Jorge de Sena numa das suas crónicas de viagem:
Eu mesmo, na verdade, vim a nascer des[s]as Áfricas — sem elas, minha mãe, voltando dos metropolitanos estudos para Angola, menina e moça e ruiva, não teria conhecido a paixão romântica e brutal do capitão de navios, jovem e de bigodes retorcidos, que foi o meu pai.
Que eu grite a angústia firme da exigência eterna
grito após grito, quanto um grito custa:
- e nem o meu mundo é já o que me dás.
Excerto do poema Ode a um Reformador do Mundo
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
Atribuo à tarde a solidão que arraste
a única nuvem hoje iluminada no céu.
Melancolias virão simulando ocasos.
A exactidão com que a tarde cai,
este cuidado em serpentear pelas ruas...
A que ponto a minha cólera é tranquila!
Nenhum mundo é meu.
Todos estão em mim desde que existo.
E a minha voz nasceu para falar do último,
porque ele nunca existirá,
e é incrível que não haja fim.
Excerto do poema Ocaso
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
É impossível que uma semelhança tão pura
não ilumine um desastre igual!
Quero lembrar-me reconquistando mais tempo.
Todo eu sou ofensa e carne viva lembrada.
Excerto do poema Ocaso
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena
Que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.
Excerto do poema Metamorfose
Coroa da Terra (1946)
in Poesia I de Jorge de Sena