Eis-me contemplando ansioso o quadrado luminoso da janela em casas e ruído invisível, ou, encandeado pelo Outono translúcido, os objectos familiares arrumados, embora dispersos, mas calmos. Sobe de mim uma voz que procura, que percorre os armazéns da angústia, da alegria, da memória, escolhe e não encontra nada ou ninguém de quem seja o cântico. E, no entanto, canta suavemente, ou não, não canta, é véspera de canto, modulação futura, suspensão harmónica, desejo, é sol e ramos secos de árvores longínquas, silêncio de mim próprio, sem música, sem tema, é vago entoar de gesto, um ar de dança, claridade, um estar presente, navegar de outono sobre as nuvens em fio.
O mundo é tão grande e tão rico, e a vida tão cheia de variedade, que nunca faltarão motivações para poemas. Mas hão-de ser sempre poemas circunstanciais, quer dizer, a realidade terá de proporcionar-lhes o motivo e a matéria.
Goethe em «Conversações de Goethe com Eckermann» - 18 de Setembro de 1823.
Citação que consta de Pedra Filosofal (1950) I - Circunstância
in Poesia I de Jorge de Sena
À margem dos poemas, há pequenas notas, citações, que Sena vai apontando como uma conversa íntima que vai mantendo com o seu leitor: não só escreve poesia pelo seu próprio punho, mas também partilha as suas leituras.
Nas páginas dos seus livros não se experiencia uma leitura monodimensional, muito pelo contrário, a sensibilidade intelectual do poeta espraia-se para fora dos seus versos de encontro ao leitor com quem mantém uma conversação tertuliana.
Sena mostra a sua vulnerabilidade sem se ajoelhar, questionando filosófica e metafisicamente o mundo, refugiado na sua intimidade humana e ao mesmo tempo saindo dela, afrontando sem desculpas e sem rodeios a condição humana.
Os seus versos palpitam de tensão espiritual, desafiando a norma que propositadamente se complexifica para não ser dissolvida.
Houvesse uma fórmula que definisse a sua poesia, seria aquela que multiplicasse infinitamente o conhecimento de si próprio pelo do mundo.
Da noite a aragem tépida refrescando vem surpreender as luzes que, interiores, se apagam lentamente, uma após outra, como em madrugada ao longe as luzes de outra margem - rio descido pelas águas tenuamente crespas, sombras passando, e escorre matutina, ainda sem brilho, a vibração das águas, enquanto rósea apenas de uma aurora ausente a crista das montanhas reverdece.
Por sobre a plácida e pensante aragem física das violações diurnas, de amarguras, vilezas vistas e traições sonhadas, notícias de jornal e desafios, guerra eminente ou, mais que dolorosa, cravada nas imagens de uma paz sombria, perpassa a noite véus de primavera, glicínias que amanhã estarão floridas, e folhas verdes, muito frágeis, tenras, e o azular-se o mar, o distanciar-se o céu na crua luz que juvenis sorrisos, braços ligeiros de alegria funda, devora lentamente, e as rugas ficam. - ao longe as luzes de outra margem, rio onde a noite se esconde até à morte.
Terminei a leitura dos poemas seleccionados de Coroa da Terra, publicados em 1946, escritos, quase todos eles, durante os anos em que Sena viveu como estudante universitário no Porto.
Quando foi excluído da Marinha de Guerra Jorge de Sena decide estudar Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia do Porto, onde obtém a licenciatura em 1944.
Aliás, 1944 foi um ano difícil para o poeta em que para além do luto pelas mortes do pai e da avó materna, viveu atormentado pelas dificuldades económicas, vivendo da ajuda financeira dos amigos.
Talvez por isso, os poemas de Coroa da Terra me pareçam tão rudes e dilacerantes, como se a criança que nunca foi não tivesse infância a perder e sofresse de uma adultícia perpétua que nunca o abandonaria.