Já aqui tinha referido como os prefácios e os posfácios de Sena me têm fascinado. São eles que me agarram pela mão e me levam pelas profundezas da intimidade do poeta. Mas Sena tinha também outro objectivo em mente e decidiu escrever notas explanatórias à margem de alguns poemas:
Essas notas - e desde sempre poetas se anotaram, nada há de novo ou estranho nisso - destinam-se não a exibir cultura que aliás é sabido que tenho, mas a ajudar o leitor menos informado (o que não é vergonha nenhuma, já que toda a gente de boa fé é sempre muito bem informada do que mais importa: a compreensão da liberdade, da justiça e da dignidade humana, pelas quais sempre me bati em prose e em verso, como na vida, e essa compreensão é chave que muitas vezes falta aos «sabidos» que todo lo mandam).
Comecei a ler os poemas de Metamorfoses e desde esse momento que vivo em pura arte.
Não a arte objectificada de um museu que vive em permanência expectante de ser observada, mas a arte que vive das imagens e reflexões que despertam. Nestes poemas a arte não é um objecto, mas pura humanidade, não é individual, mas o resultado da criação humana como reflexão do colectivo.
Cada poema corresponde a uma obra de arte real que Jorge de Sena indica no livro. Se um dia estivermos presencialmente perante a obra de arte escolhida por Sena, conseguiremos fazer uma leitura verdadeiramente tridimensional. Até lá podemos observar as fotografias que o poeta decidiu colocar no livro, enquanto lemos o poema correspondente. É uma rara oportunidade de leitura com (quase) todos os sentidos.
Stephen Arkáditch não escolhia tendências nem convicções, já que essas tendências e convicções lhe surgiam por si sós, do mesmo modo que não escolhia os modelos de chapéu ou de sobrecasaca, optando por aqueles que se usavam. Ora, para ele, homem de sociedade necessitando de uma certa actividade intelectual, que se desenvolve por norma nos anos da maturidade, isso era tão indispensável como ter um chapéu.
Se havia uma razão para preferir a tendência liberal e não conservadora, que muitas pessoas do seu círculo também seguiam, não o fazia porque achasse a tendência liberal mais razoável, mas pelo facto de ela se coadunar mais com o seu modo de vida.
Nas primeiras páginas do livro assistimos ao momento mais importante da história: a chegada de Anna à estação. Com ela tudo irá mudar, não só acontecimentos, mas também as expectativas de todos.
O mais interessante nesta chegada são as diferentes perspectivas de quem está à espera.
O seu irmão Stiva espera que Anna seja a emissária que irá salvar o seu casamento. Dolly, a sua cunhada, vê a sua visita como um stress acrescido na sua vida. Vronsky imagina-a uma mulher distante e aborrecida.
E quando finalmente Anna entrar em cena todas as expectativas de desvanecerão no ar, porque é uma mulher que desafiará todas as opiniões e convenções.
Stephen Arkáditch assinava e lia um jornal liberal, que não era de orientação radical mas daquela tendência que a maioria acatava. E, apesar de, no fundo, nem a ciência, nem a arte, nem a política lhe interessarem, partilhava com firmeza, em relação a elas, os pontos de vista da maioria e do seu jornal, mudando-os apenas quando a maioria os mudava, ou antes, não os mudava - os pontos de vista alteravam-se sozinhos, imperceptivelmente, na sua consciência.