Minha querida Mécia, meu amor A saudade imensa que sinto de ti, a amargura de não estares ao meu lado sobrelevam a sensação estranhíssima de respirar o ar livre do Brasil que logo no avião começou. Revejo o teu vulto na porta do «embarque» no aeroporto a dizer-me adeus e de tantas vezes que nos temos separado e de tanto sermos um, foi esta a separação mais dolorosa. Creio que poucas vezes terei sofrido tanto e sei também que cada vez mais somos um só, vivemos um no outro, meu Amor, não é?
in Correspondência Jorge de Sena e Mécia de Sena «Vita Nuova» (Brasil, 1959-1965)
Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito.
Excerto do contoSuper Flumina Babylonis
in Antigas e Novas Andanças do Demónio (1960 e 1966)
No entanto, se o autor quisesse traçar a verdadeira biografia de Camões ver-se-ia à beira do profundo mistério do desconhecido. Ninguém sabe muito bem quais as certezas biográficas de Luís de Camões:
É certo que pouco ou nada se sabe de concreto acerca desse homem, cujo nascimento, cuja vida, cuja morte e cujos restos mortais são duvidosos, maravilhosamente duvidosos. O que é um convite à imaginação.
~Jorge de Sena~
Mas os génios não precisam de biografia, porque a obra revela mais deles do que os eventos que viveram, assim o escreveu Latino Coelho:
É que os génios não têm, não precisam de ter biografia.
E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhe escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
- Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
Excerto do contoSuper Flumina Babylonis
in Antigas e Novas Andanças do Demónio (1960 e 1966)
A ler o conto Super Flumina Babylonis de Jorge de Sena inserido no livro de contos Antigas e Novas Andanças do Demónio e eis, que me deparo com a constatação de que este conto é mais um golpe de originalidade e criativade de Sena.
Unindo duas realidades, a histórica e a imaginada, Sena recria alguns momentos da vida de Camões, numa fase final, em que vive esquecido por todos, à mercê da esmola alheia.
A expressão latina super flumina babylonis (sobre os rios da Babilónia) são as primeiras palavras deumdossalmosdeIsrael, cantado pelos judeus no exílio da Babilónia, exílio esse profundamente sentido também por Jorge de Sena e por Luís de Camões. Super Flumina Babylonis é um canto a duas vozes: a de Camões, esquecido e abandonado pela pátria, vivendo na miséria, sem perder a sua grandeza literária; e a de Sena, marginalizado pela pátria onde nasceu e que o votou à mais profunda incompreensão.
As mágoas, os pensamentos de um são também as do outro, duas vozes unidas numa só.