Afirmam os filósofos da natureza que uma certa sensação desagradável precede, à boca do estômago, o apetite, de tal maneira que a natureza, que se esforça por se conservar sã em si própria, assim se refaça, uma vez estimulada.
Do mesmo modo julgo, com razão, que o admirar-se, causa do filosofar, precede o desejo de saber, para que o intelecto, cujo ser é entender, se realize no estudo da verdade. Com efeito, as coisas raras, ainda que monstruosas, costumam mover-nos.
in A Douta Ignorância de Nicolau de Cusa
(Tradução, introdução e notas de João Maria André)
A carta que o Manuel mandou tua era anterior à que recebi. Vivemos, meu Amor, numa balbúrdia de correspondência trocada em que nem a cronologia nos dá a ilusão de sequência. E eu roído de saudades de ti, ansiando por falar contigo e ter-te, e tanto precisando da tua pessoa e da tua presença. Contigo a meu lado estaria pronto para tudo. Escrevi-te um poema:
Nas terras de além do mar está meu Amor assentado. Seus olhos fitam a noite, Seu seio sobressaltado respira em brandos soluços nas cartas que está escrevendo o meu silêncio de ausente,
de distante e de presente no corpo que se torcendo está de saudades de mim. Oh meu amor, minha amada Meus ouvidos, minha fala.
Beijos, beijos aos pequenos. Beijos e abraços e saudades do teu do coração
Jorge
in Correspondência Jorge de Sena e Mécia de Sena «Vita Nuova» (Brasil, 1959-1965)
Os contos inseridos em Os Grão-Capitães estão cheios de gestos. São mais os gestos que as palavras ditas em voz alta nos diálogos ou monólogos inexistentes.
Gestos mergulhados na opressão de uma sociedade ditatorial que não permite a palavra espontânea, apenas a que consta do regulamento, repetida como uma oração sem salvação possível.
A miséria dos velhos misturada com a miséria dos novos numa cidade sombria e decadente:
A urgência de novos valores é suscitada pela ocorrência do desconforme, em que o escatológico e o grotesco irrompem, ainda que no seio de uma sociedade pretensamente normalizada, fragilmente polida.
A descrição do mendigo nu e da sua companheira, dos seus atos desafiadores das conveniências sociais, conscientes de estarem a ser observados, de “Choro de criança”, resulta numa metáfora da decadência que grassa no seio de tal sociedade.
Havia nos cabelos alourados, e caídos sobre a testa e as pálpebras fechadas, no nariz que o ténue respirar afilava a espaços, no ligeiro recurvar dos lábios entreabertos em sorriso, no braço e na mão que se alongavam atravessados sobre o corpo, nos dedos semicruvados como de quem se esquecera, ao adormecer, de segurar um brinquedo, ou se lembrara, dormindo, de pegar algum, a distensa e prolongada moleza, o repousar tranquilo da criança que dorme.