Quando embarca num navio em direcção a Nova Iorque, cidade a partir da qual iniciará a sua viagem pelos Estados Unidos, Érico Veríssimo divide-se em dois: o escritor de 36 anos, realista e o seu alter ego Malasartes, mais jovem e romântico, que vibra com a expectativa de viver novas aventuras.
O autor apresenta o que vê com mais ironia, de uma forma mais distanciada, fazendo a reconstituição da história dos locais e instituições visitadas, contextualizando a cultura naquilo que visita.
Mas ao seu alter-ego - Malasartes - reserva as reacções mais entusiastas perante as grandes cidades que visita, os comentários mais espontâneos sobre os comportamentos dos norte-americanos e os encantamentos perante cenas e paisagens.
O marido de Mrs. Barber é um velho advogado de cara larga, rosada e pícara. Trata-me logo com uma cordial familiaridade, chamando-me old man (meu velho) e confessando que não consegue aprender o meu nome. Para simplificar o problema, sugiro-lhe que me chame Mr. Brazilian.
Toda esta gente é de uma encantadora e tranquila simplicidade. Perguntam-me coisas do Brasil. Imaginam que falamos espanhol e que vivemos às voltas com o problema das populações índias. Temos nós uma literatura própria? Gostamos dos americanos do Norte? Há muitos alemães no nosso país?Que pensamos de Roosevelt?
Durante o Verão as bibliotecas municipais vão ter connosco à praia, piscina e parques da cidade. Podem encontrar algumas delas que podem frequentar de pé descalço.
Os arranha-céus não me dão nenhuma sensação de esmagamento ou vertigem. Como não há casas baixas para servir de ponto de referência e comparação, não existem também os contrastes chocantes.
Venho a saber que são franceses ricos fugidos à invasão alemã. Representantes de uma espécie que está fadada a desaparecer como os búfalos e as girafas. Remanescentes dum mundo que se desmorona, duma civilização em artigo de morte.
Nasceram e criaram-se num ambiente de estufa, aquecido por ideais abstractos de beleza, adorando fórmulas feitas, ignorando a miséria em que vivem as classes inferiores, achando que tudo sempre estaria bem no mundo, uma vez que eles pudessem perfurmar-se de essências caras, ler Cocteau, comentar Picasso e Matisse e dar-se ao luxo de serem esquisitos, originais e incompreendidamente refinados.
São criaturas perfumadas, artificais e melancólicas. Deploro-as porque, no fundo, elas parecem saber que isto é o fim.
(...) Trarás todo o Pascoaes, todo o Pessoa, a minha papelada, a máquina de escrever, etc., tudo o que possas e vejas necessário para os trabalhos próximos, entre mãos.
Os pequenos até dois anos pagam no avião 10% e até 12, 50%, o que significa que farás as tuas contas e trarás aqueles que entenderes mais conveniente que venham: os três mais pequenos e a Isabel Maria, que te ajudará, talvez seja o melhor. Os outros viriam depois.
Isto, meu Amor, é um grande mundo, e a generosidade desta gente e dos nossos amigos portugueses é um facto. É agora ou nunca, meu Amor, e eu estou certo de que nunca mais daí sairíamos, entendes?
Aceito Assis para começar, e para ter enfim aquela vida plena contigo e com o meu trabalho sem engenharias, que eventualmente poderei ter, pois também deste campo vieram possibilidades sondadas e ofertas concretas.
O ensino das crianças é aqui gratuito. Adaptar-nos-emos. Contigo a meu lado, fora dessa piolheira irreparável, iremos até ao fim do mundo (e Assis… é um pouco isso). Acho importante que, sem alardes, pois, oficialmente, a nossa instalação não é definitiva, prepares tudo como melhor souberes, e tu sabes tudo como eu não. (...)
Jorge
in Correspondência Jorge de Sena e Mécia de Sena «Vita Nuova» (Brasil, 1959-1965)