(...) Don Juan, o mais velho, falando pausadamente, explicou que nós, os portugueses, tínhamos a convicção de que, em nenhuma língua, havia palavra equivalente à nossa «saudade», e que, portanto, os outros povos não sentiam aquilo que nós chamávamos assim. Brincou com pedacinhos de miolo de pão, e prosseguiu:
- Mas essas coisas são humanas, não têm nada de transcendente, de especial, ou de especificamente português. As pessoas têm saudades, como os portugueses dizem, de tudo o que hão perdido, de tudo o que não hão tido, ou mesmo de qualquer coisa, pessoa ou lugar de que estão separados.
Neste dois anos de ciclo de leitura de Jorge de Sena - 2021 e 2022 - li muito a sua poesia e ler a sua prosa tem sido uma revelação.
Sena foi um escritor multifacetado como poucos conseguem ser. Poeta, contista, romancista, ensaísta. Tinha um profundo conhecimento da literatura não só como escritor, mas também como leitor.
É extraordinário assistir à sua capacidade de escrita em vários géneros e estou completamente rendida a Sinais de Fogo, o seu primeiro e único romance.
Quando o decidiu escrever Sena idealizou-o como o primeiro volume de um grande ciclo de romances que pretendia criar, mas infelizmente deixou-o inacabado e o ciclo nunca veria a luz do dia.
Ser-se escritor, ou qualquer coisa semelhante e de ordem artística, era ainda pior que ser político. Um escritor, um pintor, um actor, não tinham qualquer lugar na escala social. E poeta era sinónimo familiar de distraído, de pobre de espírito, de idiota chapado, quando o não era de pessoa que devia dinheiro a toda a gente. Mas eu não tinha escrito versos; acontecera que umas palavras, por um acaso qualquer, se me haviam juntado na cabeça. Nada mais.
«Nas vastas águas que as remadas medem, tranquila a noite está adormecida.»
Eram versos, sem dúvida. Mas havia alguma razão para que eu os estivesse fazendo, ou para que eles se fizessem dentro de mim, à minha custa?
Eu nunca lera muitos versos, nunca me interessara especialmente por poesia. Na minha família, a literatura não tinha qualquer existência, nunca ninguém fora escritor. Liam-se livros, sem dúvida, mas por desfastio, e sem fixar sequer o nome dos autores. Na minha casa, ainda menos: nem os havia.
E que significava? Seriam versos? Repeti mentalmente: «Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida.» Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: «Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida.» Reli o que escrevera. E depois? Olhei o mar que escurecia, com manchas claras que ondulavam largas. Os barcos iam pelo mar fora, e nalguns havia lanternas acesas.
«Nas vastas águas...» Nas vastas águas... Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitei-o fora. Mal amarrotado, ele foi descendo num voo balanceante, até que pousou numa rocha. Aí, vacilou, aquietou-se, e, numa reviravolta súbita, deixou-se cair paa o meio das pedras e sumiu. Era quase noite escura. Voltei para a cidade.
A narrativa de viagem é uma conversa cultural entre quem viaja e o lugar aonde chega, uma conversa entre duas culturas. Uma conversa que exige movimento da nossa zona de conforto para o que nos desconforta.
Quando viajamos para um lugar queremos entender o que não conhecemos. Partimos dos nossos preconceitos, dos nossos estereótipos culturais e fazemos um paralelismo constante entre o que é semelhante e o que é diferente, e isso acontece também ao leitor que lê e vê de uma forma imaginária a viagem narrada.
A narrativa de viagem é interdisciplinar, abarca não só a visão pessoal do autor, mas também áreas do conhecimento como história, antropologia, arquitectura e arte.
— Como se explica isso? — pergunta. — Parece que estamos em tempo de paz. Essa gente brinca, canta, dança, vai ao cinema, ri, bebe... como se nada estivesse acontecendo... — Estás acostumada à nossa maneira sul-americana de encarar a vida — respondo. — Somos povos dramáticos. Cultivamos com carinho mórbido as nossas dores e desgraças. Temos um prazer pervertido em escarafunchar nas nossas próprias feridas.
Saímos às dez horas para o calor pesado da noite. Continua a pantomima nas ruas.
É admirável a maneira como esta gente encara a guerra. Não faz drama. Luta, trabalha, mas nos intervalos entre as horas de combate e trabalho, trata de evitar que a lembrança da guerra lhes roa os nervos. Ninguém usa luto. Não há choro nem o bíblico ranger de dentes. No peito de muitos soldados e marinheiros vemos as cores simbólicas das condecorações recebidas.