No passado dia 23 de Abril comemorou-se o Dia Mundial do Livro. Data instituída pela UNESCO em 1995, escolhida por ter sido o mesmo dia que em 1616 foi sepultado Miguel de Cervantes, coincidindo o dia também com as datas do nascimento e da morte de William Shakespeare.
Este ano incidiu sobre o tema das línguas indígenas.
A ditadura do politicamente correcto saiu à rua com a destruição de obras literárias, com alterações ad hoc à escrita original de autores como Agatha Christie. Parece-me que a censura ditatorial regressou à literatura o que não deixa de ser irónico quando se apregoa tanto a liberdade.
Há que aceitar e respeitar a época e o contexto histórico em que foram escritas, o que implica aceitar um passado em que não havia linguagem inclusiva. Já Confúcio dizia que devemos estudar o passado, se quisermos decifrar o futuro.
A não esquecer a Feira do Livro de Lisboa que irá decorrer entre os dias 25 de Maio e 11 de Junho no Parque Eduardo VII.
Penetrava a sebe mas não penetrava o mistério que fugia sempre.
E não era só na sebe de ervilheiras que havia mistério. Em todas as copas das árvores, dentro de todos os bosques, no seio recôndito de todo o arvoredo, havia sempre qualquer coisa que, se eu me afundava na densidade da folhagem, parecia fugir de mim, esconder-se, mas continuar num rumorejar difuso, num adejar discreto à minha volta, mais adiante um pouco, mais além...
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes
Nascida em Lisboa, a 18 de Novembro de 1921 Natália Nunes para além de ficcionista foi tradutora, traduzindo Dostoievsky, Tolstoi, Simonov, Elsa Triolet, Violette Leduc, Balzac e Roger Portal, para editoras como a Portugália, Edições Cosmos e Edições Aguilar, do Rio de Janeiro.
No ensaio, escreveu ainda sobre Dostoievski, Raul Brandão, Augusto Abelaira, José Cardoso Pires, entre outros autores, sobretudo para as revistas Vértice e Seara Nova.
Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, especializou-se mais tarde como Bibliotecária-Arquivista em Coimbra, tendo ocupado o cargo de conservadora no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e de bibliotecária na Escola Superior de Belas Artes, conciliando com a escrita.
Havia temporadas em que me esquecia da existência dessa raposa da capoeira velha. Mas de outras vezes, quando era obrigada a passar-lhe defronte, evitava olhar para os seus domínios.
Sabia que a manhosa não gostava nada de que olhassem a sua morada. Todo o mal que ela podia fazer-nos se evitava com essa simples abstenção: não olhar.
Apesar disto sempre ia deitando uma olhadelazita pelo canto dos olhos. Isso, na verdade, não era bem olhar e o que ela acima de tudo detestava era que nós mirássemos de frente, sem disfarces.
Essa raposa velhaca passara a ocupar a capoeira desde o dia em que a Cândida Maluca se sentara ali e se pusera a gritar: -Raposa! Raposa! Lá está ela...
Eu não a vi entrar para a capoeira nesse dia mas, o que é certo, é que foi desde então que ela passou a viver lá.
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes
Se me permitem uma observação que não é dirigida contra ninguém, nem contra partidos, eu penso que a imaturidade de um povo é sempre espelho da imaturidade dos seus governantes.
Se um povo se manifesta ou parece imaturo é porque provavelmente os dirigentes que dele se aproximaram, não tomaram em conta as realidades; não se aproximaram dele do ângulo por que deveriam ter-se aproximado.
Excerto da entrevista Diário Popular, 30 de Setembro de 1976 por Baptista-Bastos
in Entrevistas 1958-1978, edição de Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço
À procura dos tempos perdidos da infância, em plena fuga da idade adulta, Natália Nunes escreve na primeira pessoa e descreve-nos os olhares, as experiências, as perguntas sem resposta, as aventuras dos tempos de menina que passou em plena natureza, em Oliveira de Frades, bem longe da grande cidade onde vivia.
O mais delicioso deste livro - Horas Vivas: Memórias da Minha Infância - são as observações de pura simplicidade e ingenuidade que nos convidam a entrar nas nossas memórias de infância e a reencontrar os meninos e as meninas que fomos.
No jardim gostava de andar de canteiro para canteiro, de recanto para recanto, a descobrir os segredos das flores. Porque as flores não eram apenas feitas de pétalas coloridas e de perfume, tinham uma vida, sentimentos, que nós podíamos conhecer.
Quando olhava para a cara dos amores-perfeitos via logo que eles se estavam a rir de mim, a fazer troça. Tinham cara mas eram uns descarados...
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes