Aquelas palavras humilhantes e aniquiladoras
Um dia aconteceu-me uma coisa terrível na cozinha do Passal, uma coisa que não tinha nada que ver com os cozinhados e que, afinal, passou despercebida de toda a gente. Mas, como sofri então uma das maiores dores morais da minha infância e como isso se pasou na cozinha, relembro agora o caso.
Por certo ouvira já aquelas palavras humilhantes e aniquiladoras mas nunca lhes reconhecera o verdadeiro sentido. Mas o dia chegou em que percebi o que elas queriam dizer, em que entendi que os outros não me consideravam como uma pessoa a sério.
Já não me lembro que desacato teria praticado mas os meus pais começaram a censurar-me e a certa altura disseram: «tu não tens querer!».
Senti logo uma impressão tão estranha dentro de mim! Foi como se tivessem cavado, de repente, uma cova muito funda, aberto um grande vazio no meu estômago, vazio que se ia enchendo depois com uma grande dor.
Desoladamente, respondi ainda: «Não tenho querer? Então, mais valia nunca ter nascido!»
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes