Uma tarde, ao pôr do sol, sentei-me num cabeço, dentro dum pinhal. Só, com o meu pai. Lá em baixo, não muito longe, as casas da vila, e mais adiante, as serras roxas, as aldeias, as estradas. Mas tudo estava parado e em silêncio. Nada no mundo se movia.
Só uma angústia cada vez mais forte, dentro de mim, ia crescendo e só ela era viva então sobre a terra. Cá fora o mundo acabara. Os montes, as árvores, as pedras, as casas, tudo quieto, tudo separado de tudo e sem sofrer mudança, tudo a perder a cor e a reduzir-se às formas, apenas às formas, formas sem gritos e sem vida, a mergulharem numa sombra cada vez mais densa. Foi como se vissemo mundo morto.
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes
Entre os sete e os dez anos decorre, e recria a experiência de uma menina da cidade reconduzida ao génese rústico por um acidente urbano: a doença do pai.
É isto já um símbolo, para quem o aprenda. Mas um símbolo que nasce como?
Com menos de sete anos Taia vai de Lisboa para o campo. Toda ela é sentidos e imaginação. Pelos sentidos canaliza a natureza e o social: as amoras verdes que acidulam o gosto, a mica faiscante que deslumbra a vista, as urtigas que fustigam a pele, o rosmaninho que rescende, os besoiros que zumbem; o velo adulto que o pudor esconde, o incenso que da igreja se evola, o tloque-tloque dos tamancos que passam, a feia língua em que se recolhe a hóstia, o calafrio ou o rubor que as emoções causam.
Mário Sacramento
in Prefácio de Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes