Sem dúvida que acontecerá, uma vez que as pessoas aprendam a descobrir, e a aprender, que a liberdade não é o direito de cada qual fazer o que quiser, ou de cada qual se apoderar daquilo que cobiça nos outros; a liberdade é o direito que cada um tem de ser respeitado pelos outros e o dever que tem de respeitar os outros...
Excerto da entrevista Diário de Notícias, 2 de Junho de 1977 por Manuel Poppe
in Entrevistas 1958-1978, edição de Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço
Nunca a deixavam entrar nas brincadeiras, escorraçavam-na. Ela andava sempre calada, afastada e olhando para todos com olhos turvos e boca dura.
Eu também não desejava vê-la metida nas nossas brincadeiras, não que sentisse por ela aversão ou malquerença, e nunca me associei às que escarneciam da pobre mas sentia perfeitamente que se tratava de um ser que devia ser colocado à parte.
É que a sua presença disforme, estranha e quase medonha, seria suficiente para deitar o azar a todos os folguedos. Mas, quando a via encostada à parede, gostava de ficar, disfarçadamente, a perscrutar o mistério daquela fealdade. Feia, feia, diferente das outras... que sentiria ela assim, encostada à parede, a olhar para nós com olhos maus e tristes ao mesmo tempo? Como era o seu sentir lá de dentro, dela? Porque ela também devia ter um sentir, apesar de ser feia, feia, feia...
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes
Natália revelava pouco de si e o pouco que revelou foi através de entrevistas. Numa entrevista intimista com o Expresso a 13 de junho de 1998 desvendou as suas origens familiares, falando do seus pais:
O meu pai era republicano. A minha mãe era ainda jovem quando se deu a queda da monarquia. Ficou-lhe uma espécie de saudosismo da mitologia, do folclore da monarquia. O assassinato do rei e do príncipe foi um acto tão violento que impressionou muitas pessoas. A minha mãe viveu tudo aquilo tão intensamente, a ponto de lhe ter preenchido a existência.
O meu pai, que era da província, vinha de gente que vivia do trabalho, pequenos agricultores e artesãos, que migrara da Beira Alta para a cidade. A minha mãe já era lisboeta de segunda geração.
A minha mãe era uma pessoa muito inteligente e senhora de um vocabulário muito rico, ainda que tivesse feito apenas a instrução primária.
[O meu pai] gostava muito de ler. Sabia grande parte dos Lusíadas, bem como peças do Marcelino Mesquita, de cor! Era um frequentador de ópera. Infelizmente, foi atingido pela tuberculose, o que lhe limitou a vida.
Os meus pais tiveram quatro filhos: duas raparigas e dois rapazes. Eu e a minha irmã tirámos cursos superiores porque tínhamos um tio, muito rico, que se dispôs a ajudar, sobretudo as sobrinhas. Os meus pais pagaram os estudos dos rapazes. O meu irmão mais velho suicidou-se, e o António Alfredo (ilustrador, pintor e arquitecto de cena) andou nas Belas-Artes, mas creio que nem acabou o curso, porque se envolveu na política, na altura do MUD Juvenil, e foi expulso juntamente com o Dias Coelho, o escultor comunista que seria morto pela PIDE.
Sempre que entrava na Igreja, junto de cada altar, rezava à pressa uma oração. Em todos os altares havia santos, logo, era preciso rezar a todos não fosse algum ficar de mal comigo.
in Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) de Natália Nunes