Não me perguntem quando vou, se voltarei algum dia. Não me perguntem nada disso. O tempo alarga-se à minha frente. E a montanha, por detrás, eleva-se de tal modo na direcção do céu que me tapa tudo aquilo que não quero ver. Sendo assim, mesmo que me telefonem, mesmo que me escrevam, me falem, me choirem, me gritem, me corram, me andem, me fujam, me prendam, me larguem, cá estarei olhando de soslaio, olhando cá do estrangeiro e sempre de dentro para fora, como planeta em movimento, para esta vida cheia de luz, de força e de esperança. Até ver.
Muitas viagens a pé fez pela cidade, pela beira do rio, pensamentos e mais pensamentos, uma observação, uma intimidade, a gente do Porto é diferente, de expressão mais acentuada, notou-lhes um outro cariz, um outro semblante e as ruas mais densas, outros cheiros, outros nortes, até outro Portugal.
Da luz aleitada e transparente de Lisboa e do alto da Graça com o rio Tejo ao fundo, aquele que brilha sempre e sempre, passou para o tom mais carregado e não menos belo das ruas antigas da Ribeira do Douro ou o passeio das Cardosas.
Também esse rio com suas pontes se tornara, a seus olhos, deslumbrante. Encontrava-se num outro mundo, num ambiente encantatório, de invernos mais pesados, mais sombrios e também mais densos e concentrados de atitudes e de vida. Mais uma vez, e apesar da ansiedade e inquietação própria dos vinte e dois anos, Rómulo apercebeu-se de uma certa felicidade que os espíritos interrogativos também podem conhecer.
in Rómulo de Carvalho / António Gedeão - Príncipe Perfeito deCristina Carvalho
Espírito lúcido, irrequieto, exigente, aberto a novidade e ao aprofundar de questões, sensível ao lado trágico mas também risível das coisas, Natália Nunes demonstra na sua obra uma constante interrogação sobre a vida humana, encarada desde os seus aspectos mais concretos até elocubrações tácitas de personagens movidas pela inquietação, mas vistas de fora, em lúcidos manejos de uma narração desenvolta.
Os livros de Natália mais emblemáticos são talvez as narrativas curtas sobre eventos insólitos, personagens obsidiadas por visões ou terrores persecutórios, casos patológicos que o livro estuda ou, em certos casos, apenas dá a ver — resultando da patologia ou dos inacostumados efeitos de ridículo que alcançam a função cómica, com aspectos de farsa divertida. Tingida entretanto pelo melancólico veio de uma inexplicabilidade que marca a sua concepção do humano.Recorde-se que ter vinte anos em 1941, a meio da guerra e no auge do salazarismo, não era fácil a quem desejava concretizar uma relação com a estética e o pensamento; não só devido à censura e aos perigos pessoais que ela implicava, mas ainda porque, arrostando com tais perigos, uma boa dúzia de figuras literárias se agigantavam, na esteira do neo-realismo, então no auge da emergência pública, ao mesmo tempo que certos vultos da presença, ou outros, incertos na escolha (ou receio) de integrarem um desses dois grupos, disputavam lugares cimeiros nesse período que foi dos mais ricos das nossas Letras.
in A nuvem turbulenta : bosquejo da obra literária de Natália Nunes de Maria Alzira Seixo,
Seu pai foi um poeta inédito, pós-parnasiano, "com um pé no simbolismo".
Era conto familiar que Olavo Bilac, seu amigo, aconselhou-o a publicar seus versos. Além disso, o velho Clodoaldo era, também, tocador de violão e cantador de modinhas; dona Lídia tirava tangos do piano; idem quanto ao seu avô. E seu tio mais moço, Henrique de Mello Moraes, boêmio e seresteiro, vira e mexe baixava na Ilha com o grande amigo, o compositor Bororó e mais dois violões.
Quando não havia sarau de música o jovem Vinícius abria o Thesouro da Juventude e ia copiando ou imitando as poesias que encontrava. Assim, os concorridos saraus musicais em família, bem como a intensa leitura e cópia de poemas desde a infância, marcaram-no por toda a vida.
in Vinicius de Moraes, crítico de cinema de Afrânio Mendes Catani
Vós, cidadãos homens, representantes de um mundo a que governais e, de uma civilização a que destes forma: fazeis governos homens de todas as classes e profissões, que os derrubais, que criais culturas e as deitais por terra, que fabricais guerras e morreis nelas que vindes crescendo e vos aprimorando ser heróico a perseguir a lua desde a treva das origens; vós, homens do tempo, criaturas solitárias, donos da criação e escravos de vós mesmos; vós, inventadores do tédio e do ressentimento, portadores da verdade e da mentira absolutas, perseguidos da tristeza, da alegria precária e efémera, sempre contingenciado, pelo vosso limite a que, no entanto, não aceitais...
Vós que sufocais a mulher, que a mantendes com pulso de ferro ao nivel que gostais de chamar "a sua inferioridade física e intelectual"; vós que amais a mulher nas suas algemas, porque temeis a sua liberdade para amar; vós, que, porque temeis a realidade da mulher, a desprezais e maltratais, e porque a desprezais recebeis em paga o artifício e a traição...
Recorde-se que ter vinte anos em 1941, a meio da guerra e no auge do salazarismo, não era fácil a quem desejava concretizar uma relação com a estética e o pensamento; não só devido à censura e aos perigos pessoais que ela implicava, mas ainda porque, arrostando com tais perigos, uma boa dúzia de figuras literárias se agigantavam, na esteira do neo-realismo, então no auge da emergência pública, ao mesmo tempo que certos vultos da presença, ou outros, incertos na escolha (ou receio) de integrarem um desses dois grupos, disputavam lugares cimeiros nesse período que foi dos mais ricos das nossas Letras.
in A nuvem turbulenta : bosquejo da obra literária de Natália Nunes de Maria Alzira Seixo, Colóquio/Letras, n.º 186, Maio 2014, p. 204-209