Todas as pessoas que não compreendem a vida pensam que a vida é feita de sucessos.
Essas mesmas pessoas adoram Van Gogh porque ele cortou a orelha; Toulouse-Lautrec porque era anão; Modigliani porque era turberculoso; Rembrandt porque morreu de fome; James Dean porque morreu na estrada; Marilyn Monroe porque se suicidou.
Todas essas pessoas acreditam na posteridade porque acreditam que são a posteridade.
in Quase briga entre amigos
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
Perto do Coração Selvagem, espectáculo de Fauzi Arap encenado entre os anos de 1965 e 1966 no teatro da Maison de France, reuniu trechos do livro homónimo (a estreia de Clarice, de 1944), A Paixão segundo GH e A Legião Estrangeira.
No elenco, Glauce Rocha, Dirce Migliaccio, um estreante José Wilker e o próprio Fauzi Arap revezam-se em pequenos monólogos, classificados por alguns jornalistas como declamações.
Nada mais havia a dizer. Faltava-lhes o peso de um erro grave, que tantas vezes é o que abre por acaso uma porta salvadora.
Algumas vezes eles tinham levado muito a sério alguma coisa. Eles eram obedientes.
Também não apenas por submissão de pobreza de alma, mas como num soneto, era obediência por amor à simetria. A simetria lhes era a única arte possível.
in Os obedientes (Conclusão)
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
«Ser um igual» fora o papel que lhes coubera, e a tarefa a eles entregue - e que agora descobriam não ser essencial. Os dois, condecorados pela vida obediente, graves, correspondiam grata e civicamente à confiança que os iguais haviam depositado neles. Pertenciam a uma casta. O papel que cumpriam, com certa emoção e com dignidade, era o de pessoas anônimas, o de filhos de Deus, como num clube de pessoas.
Talvez apenas devido à passagem insistente do tempo tudo isso começara, porém, a se tornar diário, diário, diário. Às vezes arfante. (Tanto o homem como a mulher já tinham iniciado a idade crítica.)
Eles abriam as janelas e diziam que fazia muito calor. Sem que vivessem propriamente no tédio, era como se nunca lhes mandassem notícias. O tédio, aliás, fazia parte da obediência a uma vida de sentimentos honestos.
in Os obedientes (I)
A Descoberta do Mundo (Crónicas) - Clarice Lispector
A rosa revela o ser em seus vários contrastes, entre a completude e a fragmentação, entre a sanidade e a loucura, entre o si mesmo e o Outro. E nesse espaço entre o eu e o Outro, a rosa ajuda a revelar o mundo exterior, tendo como ponto de partida um mergulho profundo no mistério da flor.
Ainda não li todos os livros de Clarice, mas nos que li encontrei certamente rosas, cultivadas misticamente, como pequenas deusas castigadoras de espinhos, mas às quais nos submetemos hipnótica e cegamente:
Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas tem gosto bom na boca - é só experimentar.
A páginas tantas Clarice confessa, assim mesmo, despudoradamente, que já as roubou. E o bem que soube tê-las roubado! Eram mais cheirosas, mais bonitas, mais dela.
Flores e espinhos são belezas que se dão juntas. Não queira uma só, elas não sabem viver sozinhas... Quem quiser levar a rosa para sua vida, terá de saber que com elas vão inúmeros espinhos. Não se preocupe, a beleza da rosa vale o incômodo dos espinhos...
Mas a rosa mais bonita de todas era aquela que o médico tinha no consultório. Uma rosa que viveu em água mais tempo do que todas as outras. Talvez por pura paixão.
E uma relação íntima estabeleceu-se entre o homem e a flor: ele a admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou, e com tanto amor era observada, que se passavam os dias e ela não murchava.