Fiz apenas duas visitas à biblioteca este ano e tudo por culpa da pandemia.
Uma em Junho e outra, mais recente, em Outubro.
Em Junho não me autorizaram a entrada. Fiquei à porta e entreguei uma lista dos livros que queria requisitar rabiscada em papel. Momentos depois entregaram-me os livros que pedi dentro de um saco de plástico transparente. Como se estivesse a pedir livros clandestinamente para ler, fugindo depois com eles debaixo do braço, pela calada do dia, esperando não ser vista pelas ruas vazias.
A ausência das estantes da biblioteca foi tão surreal e desconectada, que quando acabei de ler os livros que trouxera, devolvi-os e não voltei a requisitar mais.
Em Outubro voltei, deixaram-me entrar na biblioteca e finalmente senti o regresso daquela banalidade que tantas vezes repreendi e pela qual senti tanta saudade. Aquela banalidade do deambular pelas estantes, do tocar nos livros, espreitar-lhes as páginas.
Quis tocar num livro e em pleno gesto declararam que estava proibida de lhe tocar. Tudo em nome da pandemia, essa deusa que agora põe e dispõe da nossa humanidade.
A repreensão não vem já pela perturbação do silêncio, mas por tocarmos nos livros, o estranho e singular propósito da existência de uma biblioteca.
Apontei os livros que queria e trouxe-os comigo para casa.
A biblioteca, com as suas estantes cheias de livros intocáveis, continua a ser surreal.
A banalidade, que tanto repreendi, ainda não regressou e nunca a quis tanto.
Antes de decidir ler ou criar o meu ciclo de leitura de poesia russa já andava a ler Pushkin, porque é impossível ler literatura russa, seja ela em prosa ou em verso, e não ler o seu maior poeta.
Isto para dizer que no livro que estou a ler - The Penguin Book of Russian Poetry - estou a aproximar-me do capítulo dedicado a Pushkin.
Como já tinha lido alguns dos seus contos e poesia, descobri que ainda não tinha lido uma das suas obras emblemáticas A Filha do Capitão.
Redimi-me da falha e já está na minha estante digital. Far-me-á companhia nas próximas semanas de Outono, bem como a sua poesia.
Sofro de uma obsessão incurável: a de ler o primeiro livro de um autor.
Não importa se figura da lista dos seus melhores livros, não importa se foi esquecido pelos anais da literatura. O primeiro livro escrito é a declaração de alguém como autor. Por isso persigo incansavelmente o primeiro livro escrito.
E na senda da minha obsessão - que alimento sem remorsos - descobri o primeiro livro de poemas de Mário de Andrade. Não foi uma descoberta fácil e por isso mais orgulhosamente a exibo na minha estante.
Escrito sob o impacto da I Guerra Mundial e sob o pseudónimo de Mário Sobral, no Há uma Gota de Sangue em Cada Poema não encontramos o poeta que hoje conhecemos e que tanta influência teve no Modernismo brasileiro.
Encontramos um poeta ainda influenciado pelas escolas literárias anteriores à Semana de Arte Moderna, com poemas que obedecem a certas normas estéticas, como a metrificação e a rima, sem a liberdade que viria a colocar nos seus poemas mais tardios.
Mas é o seu primeiro, o livro que o fez nascer, e é tudo o que (me) importa para a sua leitura.
Ler a biografia de um autor não é essencial para compreendê-lo. Muitas vezes a biografia de nada serve para compreender a sua escrita, mas se quisermos conhecê-lo profundamente para além dos muros das suas palavras, nada melhor do que ler a sua biografia.
E preferencialmente enquanto estivermos a ler os seus livros. A experiência de leitura torna-se mais profunda e cativante. Vivemos em pleno não só a escrita do autor, mas também o ambiente e a era em que viveu.
Não tem sido fácil encontrar literatura brasileira em Portugal, especialmente os autores que quero ler. Os que encontrei são da Gosto de Ler da Penguin Random House Grupo Editorial, mas são muito poucos para o ciclo de leitura que pretendo fazer.
Felizmente, os brasileiros têm um excelente portefólio de ebooks disponíveis e, graças a eles, tenho lido excelente literatura brasileira que, de outro modo, nunca conseguiria ter acesso.
Como esta preciosidade - O Caminho para a Distância - o primeiro livro de poesia de Vinicius de Moraes, publicado em 1933, enquanto ainda estudava na Faculdade de Direito do Catete, no Rio de Janeiro.
Um livro que se junta à minha estante virtual e que irei ler, logo que acabe o ciclo de leitura de Cecília Meireles.
Ainda não será uma fotografia da minha estante (ou estantes), mas dos novos livros que se irão acomodar junto àqueles que já li e aos que desesperam pela minha leitura. Ainda não sei muito bem onde e como arrumá-los, algo que raramente me preocupa quando os compro, mas que rapidamente se torna no maior dilema do leitor compulsivo.
A verdade é que nem quero saber onde eles ficam, desde que estejam comigo.
E cá estão eles, a maioria de alfarrabistas, aos quais agradeço a paciência e o sorriso, pela minha eterna demanda:
Este instante da minha estante é especial e, por isso, mais longo que os pequenos instantes que geralmente partilho. Longo não só em tempo, mas também em distância.
Fui à Feira do Livro, mas este ano troquei Lisboa pelo Porto, num regresso às raízes, num mergulho muito aguardado nas páginas pelas quais tanto esperei abrir, ali presente, inteira, de pés no chão, em carne e osso.
A espontaneidade e o calor das gentes do norte - que são também os meus - que em mais nenhum lugar se encontra, enrolaram-se em mim num arrepio da falta que me fazem. E a pronúncia do norte, que saudade!
Os Jardins do Palácio de Cristal têm a magia de outras eras e perdemo-nos propositadamente pela sua geografia para nos reencontrarmos com o Douro.
São jardins de encantar, com os faisões a caminharem ao nosso lado e o vento a dispersar as páginas dos livros, ansiosos por um leitor que os leve.
Sei que os leitores estão felizes por se verem frente a frente com os seus livros, enfim reunidos, capa e mãos, extasiados, e que achavam perdidos.
À medida que o tempo passava, mais insustentável o peso que me marcava o ombro pela quantidade de livros aos quais não resisti.