Matilde, a personagem principal, parte para o campo para cuidar da madrinha doente, não sem antes visitar o irmão no seu atelier a que chama «caos».
Não deixa de ser curioso que o atelier de um artista se chame «caos», porque a arte, tal como o universo, vive em estado de desordem, de desequilíbrio, de dispersão, antes da criação.
O caos é o abismo, o início de tudo, um espaço vazio, indefinido, anterior a todas as coisas.
Segundo Teresa Sousa de Almeida, no seu artigo Capelinhas e candeias acesas Natália Nunes e a reflexão sobre o universo da arte:
O romance Regresso ao Caos, publicado em 1960, é uma alegoria da criação artística e uma crítica implacável à maneira como funciona o comércio e a difusão da cultura no nosso país.
Natália Nunes tem necessidade de apresentar a sua concepção de arte, inserindo uma perspectiva de género, num país que, ainda hoje, silencia a produção escrita das mulheres do século passado.
Não cremos que, por tudo isto, possamos considerar como pessimista a sua poesia: antes umas vezes estóica, outras vezes epicurista, outras vezes sarcástica, mas sempre fundamentalmente resultante da indiferença de quem se limita já a rememorar.
Afirmámos ser o desejo, o mais intenso, em qualquer situação, o seu principal fio condutor. Contudo, o olhar de Kavafis está tingido de indiferença de tudo aceitadora.
Por vezes refere intransigências sobre comportamentos, mas é com ironia e desenfado que delas imediatamente se alheia. Como se nos dissesse: há os que tudo fazem pelo e com o desejo, esses interessam-me; há os que nada fazem pelo desejo, esses dão-me dó, qual o velho já alheio à vitalidade, meio adormecido num café.
in Prefácio de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Kavafis tem esse dom raro dos que conseguem cruzar a intemporalidade no temporal, o espaço perdido no espaço que volta, sem sequer se deter em pensar estas suas formas de transmissão.
A poesia não é nele uma meditação sobre a poesia, mas um ingrediente do instinto da libido que atravessa épocas e pessoas, o confuso dia a dia e o evanescente histórico.
in Prefácio de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Tudo na obra afirmada como sendo para publicar pelo próprio Kavafis pertence a um continuum onde se distinguem e misturam histórias mitológicas, histórias da História, histórias da condição humana, história dos corpos, história das emoções (dentro deste último campo cabendo o domínio do especulativo a que não nos parece chamar de filosofia, embora «filosóficos» lhes chame o próprio poeta, por não nos parecer surgirem como tal o modo dos seus cogitamentos: julgamos ficar claro o que o poeta entende por filosofia quando, em «Dario», afirma «neste ponto/é necessário filosofia» e logo se segue um conjunto de implicações quase tão-só psicologizantes e moralizadoras; talvez se possam entender como filosóficos no sentido antigo da filosofia - a vontade de saber - que, num certo sentido, pode abranger também a psicologia).
Se cada poema pode parecer, e de facto também o é, separado e diverso dos restantes, o conjunto da obra lembra-nos que se trata sobre todas as coisas de uma vasta opinião sobre a realidade, uma visão de quanto tudo comparece em tudo: as lágrimas, as vitórias vãs, os desejos que, embora tentassem o contrário, um destino adverso quase sempre torna impermanentes.
in Prefácio de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Aquilo que verdadeiramente nos parece ser significativo no poeta grego é serem as personagens, nos seus poemas não directamente auto expressivos, antes do mais vozes íntimas, vindas da ruína, a do tempo, a do quotidiano, a do desejo, tentando atravessar essa ruína tantas vezes em incitação da própria voz autoral, através de sonhos fúteis de grandeza, de tensas paixões que sabem encaminhar-se para o arruinamento.
Contudo, todas essas vozes brilham, por muito que sejam baços, inglórios, derrotados os tempos e os momentos que procuravam a glória de um império, de um fim grandioso no perecimento, de um amor imenso tornado passageiro pelo destino.
Sempre a escolha de uma voz é para criar um ténue distanciamento, um envolvimento em presença indirecta, mas nunca pretende criar aravés desse processo uma autonomia de máscara; sempre reconhecemos a figura e o esquema interior que em toda a sua obra percebemos como seu, como interioridade ou como meditação suas.
in Prefácio de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
[No capítulo I de The Picture of Dorian Gray de Oscar Wilde encontram-se] semelhanças da mesma visão do processo criativo [de Cavafy].
O que nos importa, porém, é transcrever os pequenos passos que evocam essas afinidades, as quais, repetimos, provêm da síntese que Wilde realiza desde as concepções de arte de Théophile Gautier.
ao ambiente de vários dos seus poemas de temática histórica directa ou imaginária: «there is a fatality about all physical and intellectual distinction, the sort of fatality that seems to dog through history the faltering steps of kings»;
aa noção da impotência da velhice: «if old men are ever capable of any emotion»;
ao esteticismo ligado a muitas figuras masculinas: «this young Adonis, who looks as if he was made out of ivory and rose-leaves»;
aa força da entidade autoral que é, enfim aquilo a que tudo num poema reverte, mesmo que só à sua memória imaginativa, e que permeia a descrição de tanta figura dos seus versos: «every portrait that is painted with feeling is a portrait of the artist, not of the sitter»;
ao envolvimento de muitos dos poemas onde uma concepção do amor pode ser insinuada: «those who are faithful know only the trivial side of love: it is the faithless who know love's tragedies»;
a e, para finalizar, a forma de tentativa de sombreamento em personagens poéticas que, embora possam transmitir a interioridade do próprio autor, surgem como véu estilístico a que se convencionou chamar dramatização e modo indirecto de transmitir os sentidos mais pessoais: «I really can't exhibit it. I have put too much of myself into it».
in Prefácio de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
De Kaváfis também só os sábios pareciam ter entrevisto o seu talento em vida, já que Kaváfis, que há muitos anos não visitava a Grécia e passara toda a sua vida trabalhando no Ministério Egípcio das Obras Públicas, morreu de cancro da laringe em 1933, aos setenta anos, com a sua reputação enquanto poeta ainda obscura, partilhando o caminho de tantos outros que só na posteridade alcançaram o relevo que teriam certamente gostado de ter em vida.
Fado inglório para alguém que toca tão fundo.
in O efémero da beleza e a evocação da memória na poesia de Konstantinos Kaváfis