E não como um menino que sonhasse com amores impossíveis
Na escuridão do quarto, a presença dela materializava-se em rostos sucessivos que eram instantâneos que eu não vira, quando a tivera nos meus braços, mas que, sem que eu notasse, os meus olhos tinham encantadamente guardado na memória.
Eu via-a sorrindo, com os olhos fechados, num espasmo concluso. Via-a de olhos pestanejantes, a fitar-me. Via-a, com a cabeça inclinada ao lado, e os cabelos afastando-se verticais. Via-lhe a boca entreaberta, ora com os dentes brilhando, ora com os lábios contraindo-se. Via-lhe o perfil na sombra e em contraluz. E via-lhe mesmo o rosto que eu sentira, no escuro, percorrendo-o com as pontas dos meus dedos.
Se a paixão era o que eu sentia, nesta paz de vê-la sem imaginá-la, eu estava apaixonado. E não como um menino que sonhasse com amores impossíveis, mas como um homem que reconhecia, no amor da mulher que possuía, a sua própria paixão.
in Sinais de Fogo de Jorge de Sena