Minha querida Mécia, meu Amor
Bahia, 5.ª feira, 13/8/59
Minha querida Mécia, meu Amor
Faz hoje uma semana que parti, e curiosamente (acabo de olhar para o relógio) pego da caneta para te escrever quando, com as 4 horas de diferença (são 6 da tarde), a semana se cumpre exactamente.
Semana vertiginosa de despaisamento, de tropicalismo, de trabalho insano desde que à Bahia cheguei (passei a tarde inteira fechado no quarto a preparar o relato da tese do Casais, para amanhã pela manhã, que tinha de ser feito agora, pois logo à noite vou ver a Cacilda Becker na Maria Stuart).
É noite. Por entre nuvens, um crepúsculo vermelho que sumiu rápido atrás da imensa ilha de Itaparica que está aqui defronte dentro desta baía sem limites de que a cidade é uma parte mínima. A minha tristeza é imensa. As únicas notícias tuas que até hoje recebi são as que a mulher do Cidade me deu. Só quando estou totalmente exausto te não tenho escrito todos os dias as cartas ou partes de cartas que terás recebido, meu Amor.
O Urbano levará esta, e por isso nela nada conto de especial senão o ar livre que se respira aqui e sem ti respiro, a amargura de não ter-te a meu lado nesta paz sem limites de uma noite quente e serena, em que saberia bem suarmos juntos. Isto é muito belo, de uma força tropical que se intromete nas ruas, e creio que poderíamos ser aqui, meu Amor e minha Vida, incrivelmente felizes.
Assim, nem sei que possa dizer-te, roído de saudades, sem ouvir nas tuas cartas a tua voz e o teu conselho que são o meu arrimo e a minha consciência, inquieta a todo o instante por uma falta de notícias, que, comunicada, não aflige ninguém, de habituados que estão à fantasia destes correios de cá, em que um telegrama a avisar de uma chegada 3 dias antes, chega depois do avião em que o sujeito vem (aconteceu ao Pedro de Andrade ao ir daqui ao Rio, antes de eu chegar). Depois, com a ida dos Lourenços para a Europa, estou a ver que a minha tortura só terá alívio no Rio, se entretanto carta tua tiver chegado às mãos do António Pedro Rodrigues (aí, como o correio é directo, levará menos tempo a chegar, presumo).
O Casais tem sido muito amigo, e abriu-se comigo, e creio que fui injusto na alucinação dos primeiros dias que não comunicarás a ninguém, de perigosa que é. Mas nada disto importa, senão o silêncio que me rodeia. Eu sei que estás sempre comigo, não só porque és a minha própria alma, como por teres o dom de invisível estares a meu lado sempre em toda a parte. Esse invisível, porém, me assusta. A tua presença, o teu calor, o teu afecto, o teu infinito amor de que os nossos filhos são, graças a Deus, a expressão viva, preciso de tudo isso agarrado a mim, colado a mim, na tua boca, nos teus olhos, no teu corpo que é o mais belo poço de ternura que jamais houve no mundo. Como se é injusto humanamente! Como pode ignorar-se e como só é de um e não poderia ser de mais ninguém (pois não seria assim, nem seria sequer) um tesouro maravilhoso como é a tua pessoa, meu Amor! Eu não tenho desejos senão de ti, e tudo o mais não conta, nem importa. Querida Mécia – é incrível que estejamos separados!
Até ao Rio, não desisto de resolver este problema – o da glória infinita do teu coração batendo ao pé de mim, em mim, e para mim, dos olhos às pontas dos dedos. Meu Amor, estou cansado da vida, tão cansado de ver-te sem paz, acabrunhada de trabalho e de aflições, num buraco sem horizontes como é a nossa vida. Mas nela brilha «uma pequenina luz», a luz do teu amor – como ninguém entendeu que não há mais luzes, que toda a minha «fidelidade» é a ti? Beijo-te com uma profunda saudade, abraço-te com uma dorida ternura, e não me distraio um só momento da tua imagem tutelar, que beijo, beijo, beijo.
Teu do coração
Jorge
Carta de Jorge de Sena a Mécia de Sena. Bahia, 13-08-1959
Correspondência. Jorge de Sena e Mécia de Sena «Vita Nuova» (Brasil, 1959-1965)