Perdi toda a inocência, todo o espanto
Nada no mundo me é segredo ainda:
tudo já sei, já espero, ou que acontece
apenas do imprevisto se ilumina
de quanto aqui se repetiu diverso
mas tanto não que a estupidez humana
a mesma não pareça que conheço.
Perdi toda a inocência, todo o espanto,
e todo o encanto de que a vida ferve
o pouco juvenil de horror e anseio
e de prazer também, com que chegamos,
vazios e sem nada, ao passo extremo
que só de inútil tempo se prolonga.
Quanto melhor seria ter servido
alguma ideia, um deus, qualquer senhor,
bem falsos ou mundanos, e traíveis
nesse fingir de crença ou lealdade
com que a miséria humana se imagina
mais rica e nobre do que o nada oculto!
Excerto do poema «Nada do Mundo...»
Tempo de Peregrinatio ad Loca Infecta (1959-1969)
in 40 Anos de Servidão de Jorge de Sena