Esta semana tenho-me refugiado exclusivamente nesta viagem pelo mundo imaginário da Gata Borralheira. Na próxima semana, logo se verá.
Enquanto as outras viagens esperam pacientemente pela sua viajante, parti em busca de pormenores equidistantes entre o mundo encantado e o mundo real. Talvez opostos, talvez complementares na sua antítese, não importa.
Fascinado pelo folclore, pelos costumes, literatura, música e dialeto napolitanos, Giambattista Basile começou a estudar seriamente a cultura napolitana, coleccionando os seus contos populares, reunindo-os numa colecção - Lo cunto de li cunti - inteiramente escrita em napolitano, que viria a tornar-se na fonte de inspiração para escritores posteriores como Charles Perrault e os Irmãos Grimm.
As irmãs, vendo isto, cheias de raiva, não tendo estômago para este estilhaçar dos seus corações, desfilaram caladinhas para casa da mãe, confessando a contragosto que é louco quem se opõe às estrelas.
in A Gata Borralheira por Giambattista Basile
Gata Borralheira e Contos Similares de Francisco Vaz da Silva
As madrastas têm uma presença muito forte no fabulário de vários contos, da Branca de Neve à Gata Borralheira.
Nos tempos idos a morte das mães no parto era frequente e os viúvos eram obrigados a casar novamente para não terem de cuidar dos filhos sozinhos, o que implicava aceitar a inevitabilidade deles virem a ser maltratados pelas madrastas.
Apesar da palavra madrasta derivar da palavra "mãe", a primeira sílaba está muito próxima da sonoridade de "má" e "maldade". Arrisco dizer que a madrasta seria a mãe do outro lado do espelho, com todos os defeitos, todos os vícios, todas as fraquezas levadas ao extremo e que uma mãe não pode ter.
Mas, terminado o bate-dente, vem-se à prova da chinela, que mal foi aproximada do pé de Zezolla lançou-se para calçar aquele ovo pintado do Amor, como o ferro corre para o íman. Tendo o rei visto tal coisa, correu a apertá-la nos braços e, fazendo-a sentar-se sob o dossel, pôs-lhe a coroa na cabeça, ordenando a todos que se inclinassem e lhe prestassem reverência como à sua rainha.
in A Gata Borralheira por Giambattista Basile
Gata Borralheira e Contos Similares de Francisco Vaz da Silva
A viagem pelo mundo da Gata Borralheira continua, apesar das pequenas paragens desta carruagem para a sua autora respirar.
Desta vez estou de visita a Giambattista Basile e à sua versão d' A Gata Borralheira que revela o lado perverso da maternidade de uma forma inesperada, mais do que qualquer outra versão.
Em Giambattista Basile, com a morte da mãe biológica, a Gata Borralheira ganha o seu espaço como mulher, mas por pouco tempo. O aparecimento da madrasta anula a sua afirmação feminina, lançando-a para um mundo de conflito, separação e desencontro. Nunca encontrará na madrasta a cumplicidade, a aproximação e o encontro maternal que tanto anseia, ficando orfã não só do seu poder feminino, mas também de mãe.
Não deixa de ser surpreendente e até chocante - ou talvez não! - que neste conto de Giambattista Basile a Gata Borralheira mate a primeira madrasta - sim, há duas madrastas! - escolhida pelo próprio pai e com quem não se identificava:
"Segura a tampa."
E tu, segurando-a enquanto ela estiver a vasculhar lá dentro, deixa-la cair para que lhe parta o pescoço.
Escolhe ela própria a segunda madrasta, a mestra costureira, alguém com quem sente afinidade maternal, convencendo o pai a casar com ela:
Mas tanto a filha porfiou que um dia acertou e ele acabou por se render à persuasão de Zerolla e tomou Carmosina, que era a mestra, como mulher e fez-se festa grande.
Deixou cair do coração a própria filha; tanto que, maltratada hoje, manca amanhã, acabou por ser reduzida do salão à cozinha, do dossel à lareira, dos sumptuosos tecidos em seda e ouro às esponjas da loiça, dos cetros aos espetos.
Não apenas mudou de estatuto, como também de nome - já não lhe chamavam Zezolla, mas sim Gata Borralheira.
in A Gata Borralheira por Giambattista Basile
Gata Borralheira e Contos Similares de Francisco Vaz da Silva
«Toca, cocheiro!» e eis que se pôs a carruagem a correr com tanta fúria e foi tão grande a corrida que lhe caiu uma chinela, a mais magnífica coisa que se pudesse ver. O criado, não conseguindo apanhar a carruagem que voava, recolheu a chinela e levou-a ao rei, contando-lhe o sucedido.
O qual, tomando-a nas mãos, disse:
«Se o alicerce já é assim tão belo, o que não será a casa? Ó belo candelabro onde foi colocada a vela que me consome! Ó tripé do belo caldeirão onde ferve a minha vida! Ó bela cortiça presa à linha do amor que pescou esta alma! Eis que vos abraço e aperto; se não posso chegar à planta, venero as raízes e se não posso ter os capitéis beijo a base! Já fostes epitáfio de um alvo pé e agora sois a armadilha de um coração negro. Graças a vós era um palmo e meio mais alta aquela que tiraniza esta vida; e por vós cresce outro tanto em doçura esta vida enquanto vos contemplo e possuo.»
in A Gata Borralheira por Giambattista Basile
Gata Borralheira e Contos Similares de Francisco Vaz da Silva
Pediu-lhe que calçasse o sapato. Então Sheh Hsien vestiu-se com o belo vestido azulado, pôs os sapatos e apresentou-se ao rei.
~ Sheh Hsien ~
A variante d' A Gata Borralheira na China intitula-se Sheh Hsien. Surge num livro - Yu Yang Tsa Tsu - do século IX e é um dos contos d' A Gata Borralheira mais antigos que se conhece.
Há dois pormenores que achei interessantes nesta variante.
Um deles é a não existência de uma fada-madrinha, mas de um peixe. Na mitologia chinesa o peixe é um símbolo de prosperidade e abundância e, neste conto, são os ossos do peixe que concretizam os desejos de Sheh Hsien:
Se quiseres algo, só tens de pedir aos ossos. O teu desejo será realizado.
O segundo é o modo como procuram pelo pé que calçava o sapato perdido:
O rei pediu aos súbditos que o experimentassem, mas o sapato era uns bons três centímetros demasiado curto; então ele pediu a todas as mulheres do reino que o calçassem, mas o sapato não servia a nenhuma.
Era leve como uma pena e não fazia barulho mesmo ao andar sobre pedra.