E publicado o livro, o autor enjoa-o, está cansado, é incapaz (tem medo até) de o abrir. De modo que, anos depois, quando uma reedição o obriga a debruçar-se outra vez sobre essa obra que, afinal, nunca verdadeiramente lera, que apenas escreveu, o livro agora lido terá ainda alguma relação com o livro anteriormente escrito?
Porque aquelas palavras negras (eram azuis quando o autor as dispôs irregularmente sobre o papel), perfiladas ao longo de umas centenas de páginas que já perderam a brancura inicial, distanciadas pelo tempo, estão mudas e sem memória, só num ou noutro momento revivem e recordam ao romancista que foi ele quem as lá pôs.
in Prefácio para todas as improváveis edições futuras escrito a propósito da segunda edição
Porque não trabalho? - ripostou ela. - Qual o proveito para mim ou para os outros? Acabaria por me aborrecer também, com a desvantagem de já não poder decidir como...
Assim sou eu que escolho. Aborreço-me da maneira que me apetece.
Entre o orgulho e a saudade, a Lua hesita. Acercar-se-á cada vez mais, e um dia ficará feita em pedaços, o coração destroçado. Ficará reduzida a poeira, um anel em torno da Terra.
Foi o que sucedeu com Saturno, não sabias? Saturno também tinha uma Lua, mas ela chegou-se tanto a ele que ficou pulverizada. Os livros responsabilizam as forças contrárias do Sol e da Terra... Mas não é verdade. Dentro de milhões de anos em vez da Lua teremos um anel constantemente a brilhar nas alturas. Um anel, uma aliança entre o céu e a terra.
O fecho de O Século separou-nos. Voltamos a trabalhar juntos na RTP onde ele foi diretor do Departamento de Assuntos Culturais e o Mário Dionísio director de Programas.
Em 50 anos de convívio, nas voltas da vida, o relacionamento nunca se alterou. Nem os casamentos desfeitos, nem os amores renovados que cada um foi fazendo.
Mantivemos em comum amigos antigos e novos amigos. Ele foi trazendo as suas namoradas a minha casa, como trouxera a Susi, antes de se casarem, quando ela era ainda uma menina.
in Augusto Abelaira: não só mas também de Maria Antónia Palla
Melhor que ninguém, o próprio autor, Augusto Abelaira escreve sobre este seu romance no posfácio à segunda edição de “A Cidade das Flores”:
Porque leio eu um romance? (…) Independentemente de me ajudar a passar o tempo, a leitura dum romance multiplica em várias direcções a minha pobre vida quotidiana, permitindo-me sonhar.(…)
Essas histórias… ajudam-me a sair de mim próprio e a descobrir o mundo.(…) Os romances preocupam-se com homens vulgares, mais próximos de mim, homens que vivem no meu modesto universo.(…) Acontece, porém, que, muitas vezes, buscamos num romance as nossas próprias vidas, as vidas confusas dos nossos irmãos, as nossas preocupações.(…)
… creio que “A Cidade das Flores” documenta qualquer coisa, a reacção de certos homens a uma praga social – o fascismo; a reacção de certos homens a uma situação social adversa.(…) Homens que não crêem no futuro, ou, melhor: homens que, acreditando no futuro, não têm coragem de viver no presente esse futuro.(…) … tenho esperança de que, dentro de cinquenta anos, “A Cidade das Flores” já não seja lida. Significará isso que os problemas deste romance já passaram à história e que os homens deram mais um passo no caminho da justiça social. (…) ass="sapomedia images" style="text-align: justify;">Desejaria que “A Cidade das Flores” fosse entendida como um livro de quem acredita no progresso, na justiça, na paz, na possibilidade real de os homens serem todos iguais.
Depois, um daqueles terríveis momentos de silêncio, esse silêncio que ainda pode ser compensado pela vista se os corpos estiverem presentes, mas que mergulha os homens na mais severa das solidões quando uma linha telefónica lançada por caminhos subterrâneos se interpõe às vozes e esconde os rostos.