Estou a ler pela primeira vez Annie Ernaux e decidi começar pelo seu primeiro livro Les Armoires Vides. Não o encontrei traduzido para português e estou a ler a versão em inglês Cleaned Out.
A escrita é crua, de uma nudez confessional e directa que me tem deixado lívida com a verdade inesperada da sua humanidade.
Quem se confessaria assim publicamente? Annie Ernaux.
Como se arrancasse as páginas do seu diário e as atirasse à nossa cara num momento de frustração, raiva, desilusão, inconformismo, como se as páginas não fossem já suficientes para albergar o desalento dos momentos existenciais mais profundos que vive como ser humano.
Isto é, se por um lado essa presença não literal nega o epíteto de romance histórico a Sinais de fogo, por outro, lhe atribui a função de uma testemunhal sobre um tempo em degeneração. É isso ainda o que garante a força universal do romance e os vários planos de leitura possíveis. Seu tempo é uma recriação memorial em que vigoram, em modo de interseção, a vida pessoal do narrador, a História, as observações críticas sobre si, o outro e seu entorno, além, da constituição de um certo tratado acerca da volição criativa.
Assim é que o título do romance [Sinais de Fogo] abriga uma variedade de sentidos que vão da pulsão interior para a criação poética ao estopim de uma barbárie de marcas indeléveis para a sociedade portuguesa.
Mas, se repararmos que o modelo político aí vigente até 1974 foi reproduzido em rigorosa proporção nas demais sociedades e se repararmos na destituição de fronteiras da obra literária, logo percebemos que as situações evocadas por esse romance extrapolam o valor original designado pelo escritor: deixa de ser apenas um panorama sobre a vida portuguesa para ser um panorama sobre a comunidade humana, sobretudo porque tais experiências históricas são oferecidas por através do ponto de vista de um indivíduo às voltas com suas próprias transformações e estas, bem sabemos, são universais.
Sinais de fogo é um romance só aparentemente falhado porque, ao que conta Mécia de Sena na longa e esclarecedora introdução escrita entre 1983 e 1984 e acrescentada à terceira edição da obra, era o segundo dos quatro títulos planejados para formar o ciclo ficcional Monte Cativo.
Durante a concepção, o escritor relatou aos amigos muito de perto o processo de geração até chegar a um consenso de que o romance semiconcluído era a “primeira parte de um vasto ciclo que não sei se chegarei a escrever”.
Sua companheira recorda o quanto Sinais de fogo se processa como a entrada a Monte Cativo porque espelha “o ponto de viragem do panorama político e social europeu”. Jorge de Sena anuncia em carta a José-Augusto França de março de 1965, que Monte cativo seria o retrato de sua geração e, portanto, daria conta da vida portuguesa no que se refere aos costumes e o ambiente político e moral desde 1936 a 1959.
Uma das minhas personagens favoritas de Sinais de Fogo é a mais inesperada e surpreendente de todas: Alberto.
Não sendo uma das personagens centrais, nem de longe a mais importante para o desenrolar da narrativa, Alberto é uma personagem misteriosa que salva Jorge e o amigo Luís das garras dos agitadores da ditadura.
Surge como um devaneio apaziguante em pleno caos, reflectindo sobre o mundo e, em particular, sobre a poesia, uma nova paixão revelada ao recém-poeta Jorge que a escreve em impulsos inspiradores em papelinhos que guarda no bolso.
Alberto disserta sobre poesia, dizendo as mais belas palavras sobre esta arte. Declara a poesia como a criação de um mundo diferente, não melhor, nem o mais perfeito, nem um que substitua o nosso mundo. Apenas um mundo que nos permite observar aquilo que deixámos de ver com a vulgaridade do nosso olhar, ampliando a nossa capacidade de conhecimento para além da superfície das coisas.
A poesia permite alterar a dinâmica do pensamento, sem alterar a essência humana, uma forma de não submissão à fatalidade do mundo.
His Family de Ernest Poole enquadra-se historicamente na Grande Depressão e na Segunda Guerra Mundial.
Quatro anos após a queda do mercado de acções em 1929, durante o ponto mais sombrio da Grande Depressão, cerca de um quarto da força de trabalho dos EUA estava desempregada. Aqueles que tiveram a sorte de ter um emprego estável muitas vezes viram os seus salários serem reduzidos. Famílias que antes usufruíam de segurança económica, passaram a viver sob uma instabilidade financeira sem precedentes.
A família americana vivia de acordo com o lema da era da Depressão: “Use it up, wear it out, make do or do without.” Muitos tentaram manter as aparências e levar uma vida o mais normal possível, enquanto se adaptavam às novas circunstâncias económicas. Um novo nível de frugalidade foi atingido, mantendo hortas com legumes, remendando roupas velhas, ensopados e refeições económicas como chili, macarrão com queijo, sopas e carne lascada com torradas.
As actividades de lazer mudaram radicalmente, de tal modo que um terço dos cinemas fecharam entre 1929 e 1934 por falta de espectadores. As pessoas optaram por passar o tempo em casa, reunindo-se com os vizinhos para jogar cartas e jogos de tabuleiro como Scrabble e Monopoly, ambos introduzidos na década de 1930 e que se tornaram muito populares. A rádio também se tornou uma forma gratuita de entretenimento, distraindo os seus ouvintes das lutas quotidianas.
Quanto mais leio Sinais de Fogo mais certezas tenho das características autobiográficas deste romance. Não é coincidência que tantos aspectos da vida do autor se entrecruzem nestas páginas: das personagens aos acontecimentos, até mesmo as reflexões que faz sobre todos eles. O nome da personagem principal e narrador é também Jorge, mas as coincidências não páram por aí.
Acompanhamos a entrada na idade adulta de um grupo de amigos, com fortes paixões, múltiplos amores, episódios de libertinagem e de descoberta sexual, havendo também espaço de reflexão sobre o papel da mulher na sociedade da época, relações fora do casamento, estética e política.
Jorge vive uma metamorfose, não só na passagem de adolescente para adulto, em plena agitação marítima da Figueira da Foz, mas também como cidadão que presencia a mudança das circunstâncias do mundo.