Matilde nas últimas páginas de Regresso ao Caos sente-se dividida como mulher: deixou de ser a mulher que todos esperavam que fosse e tornou-se na mulher que sempre quis ser.
Nessa época, em que Matilde é retratada, seria impossível a existência da mulher que se desnuda para um quadro com o intuito de criar arte. Matilde acaba por não pertencer a lugar nenhum, restando-lhe ficar no “Caos”, após a morte do irmão.
Enquanto a família tolerava a veia artística do irmão, por ser homem, a Matilde não lhe perdoou o facto de seguir a vida artística, cortando radicalmente os laços com ela.
Matilde ao desnudar-se para a sua pintura, para a sua arte, descobre que o seu destino ficaria marcado por essa nudez, descobre que jamais poderá ser uma mulher como todas as outras.
A arte na sociedade em que vive não se coaduna com o papel que a mulher deve desempenhar, que é bastante limitado. E é pelas palavras de Travassos que Matilde percebe o impacto da nudez na sua arte: "[os homens] dividem as mulheres em duas categorias: as fáceis e as intangíveis".
"Além disso entre nós, há ainda muito a ideia de que isto de pintoras, escritoras, de mulheres-artistas, em última análise, são todas umas…"
Durante a sua estadia na casa da madrinha, Matilde refugia-se na sala de caça para pintar. E é nesse lugar marcadamente masculino que começa a pintar as suas "Reminiscências" e mais tarde o seu auto-retrato que intitulará como "La Gamuza".
Neste seu auto-retrato pinta-se nua, em cima de um rochedo, em contacto com a natureza, mas esta sua ousadia terá um preço muito alto e o irmão adivinha-lhe o futuro: os homens hão-de ver apenas a nudez, a tua nudez, e as mulheres chamar-te-ão desavergonhada.
Matilde não teme as consequências que lhe serão desastrosas, simplesmente porque considera que comunicou a sua verdade.
As consequências não tardam em aparecer: a madrinha expulsa-a de casa e deserda-a e perde o noivo. Mais tarde virá a conhecer Castro Borges, o capitalista, que oferece a Matilde uma série de vantagens que ela recusa. No entanto, ele não hesita em tocá-la e em tratá-la como um mero objecto. Porque é apenas isso que ele vê no seu quadro, um objecto de desejo.
Matilde conversa com o irmão Gonçalo sobre o processo de se nascer, de crescer, de se tornar artista. Conversa com ele sobre a sua vontade de voltar a pintar, não como uma simples distracção, mas com a intenção de construir uma carreira.
Ao irmão é desculpado o facto de ter seguido uma carreira musical, dedicando-se à sua arte, com toda a liberdade, simplesmente porque é homem, mas a Matilde a família não lhe perdoa a escolha de seguir uma carreira como pintora.
Aliás, Matilde viria a perceber que por detrás dos sorrisos e da complacência familiar, todos tentaram secretamente desviá-la da pintura para a colocar no bom caminho para se tornar esposa e mãe. A sociedade não perdoava que uma mulher quisesse ser livre juntamente com a sua arte.
Do ponto de vista social, todas as mulheres têm duas funções: serem esposas e mães.
Em Regresso ao Caos, Matilde rebela-se contra este paradigma. Numa sociedade tão restritiva para com as mulheres, ela almeja ter a liberdade para poder escolher a sua vida, não ter filhos por se sentir obrigada, mas sim por os desejar.
O que mais a revolta é a ideia feita de que as mulheres existem apenas para a procriação em série, como animais, e que todas as mulheres nascem para cumprir este papel obrigatório de serem mães. Ninguém questiona Matilde se ela quer ser mãe, assumem de imediato que ela tem de o ser forçosamente. É nesta luta entre o que ela quer e o que a sociedade exige que Matilde vive a sua existência.
Em Regresso ao Caos, Matilde parte para o campo para tratar da madrinha doente, adiando o seu casamento e ando-lhe "a liberdade íntima de fazer projectos".
É no campo que a sua vocação de pintora desperta novamente, adormecida pelas convenções sociais, visto que do ponto de vista da sua família, as mulheres só podem fazer quadros para se entreterem e para os pendurarem na sala de estar.
Sempre que Matilde se quer levantar muito cedo para ir pintar algo que lhe desperta o interesse, como umas vagonetas cheias de pedregulhos, a família reage muito negativamente.
O próprio noivo não valoriza a vocação de Matilde para a pintura:
Tu terás dois entretenimentos à escolha: ou fazes as tais compotas, vigias a cozedura da broa, ou então […] voltas aos teus pincéis ou às tuas telas…
Matilde redescobre a arte como o poder adormecido que a sociedade teima em roubar-lhe. É através dela que consegue viver a sua humanidade em plenitude. Mas entre a obra e o artista, a quem deve ser dada primazia?
A arte é o processo de criação e recriação sem uma finalidade específica que não seja a própria criação. Da perspectiva de quem a cria estará sempre incompleta e por isso o criador não pára de a criar. O artista capta a vida, revelando-a na sua arte e no processo de criação, e a vida não tem fim, tal como a arte que continua para além da finitude do artista.
É na sua obra que o artista encontra a sua verdadeira realidade. Na concepção nietzschiana a contradição entre obra e artista revela-se como a pessoa empírica versus a pessoa como instrumento e condição da obra. Quem deve ter primazia?
À medida que as páginas vão avançando, nota-se uma mudança de paradigma em Matilde. Como mulher passa de objecto a criadora da arte, decidida a lutar contra tudo e contra todos para se afirmar como artista. Simplesmente não pode negar o acto criador que vive dentro dela.
Segundo Teresa Sousa de Almeida, no seu artigo Capelinhas e candeias acesas Natália Nunes e a reflexão sobre o universo da arte, Matilde, a protagonista, simboliza uma artista que luta contra as convenções familiares e sociais para afirmar a sua vocação. Não interessa se é pintora ou escritora, porque a sua história é uma representação figurada das mulheres criadoras e também, do ponto de vista estético, dos homens que escolhem o seu próprio caminho dentro dos movimentos artísticos e ideológicos do tempo.