Não sou uma grande apreciadora de biografias, a não ser que o biografado me interesse tanto que não consiga ignorá-lo. Foi o caso de Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery.
Isabel Nery, jornalista, estreou-se no género biografia com este livro que considero inestimável, não só pela exactidão dos factos da vida da poeta, mas também pelo excelente contexto histórico dos anos ditatoriais da época em que Sophia viveu.
Muito bem escrito, com detalhes deliciosos de Sophia, cada página mais interessante que a anterior, em que li sem parar, muitas vezes pela noite fora, Isabel Nery consegue trazer-nos Sophia ao mais profundo do seu íntimo, sem desvendar o mistério da sua genialidade.
Em entrevista, Isabel Nery confessou a aventura em que se tornou a escrita deste livro:
Foi uma bela aventura, que me levou até à Grécia, ao Algarve, à Granja e ao Porto, mas também a ouvir cerca de 60 testemunhos.
Desde alguma família, grandes amigos, como Manuel Alegre e Graça Morais, até tradutores e especialistas na obra, assim como o pescador José Muchacho ou empregados dos restaurantes que Sophia frequentava. Ou ainda historiadores da ilha de Föhr (antes Dinamarca, hoje Alemanha) de onde o bisavô de Sophia, Jan Andresen, veio para Portugal.
Foi um trabalho profundo, de investigação, por isso, a somar ao que já referi, pesquisei arquivos, como os da PIDE, na Torre do Tombo, ou os arquivos da Presidência da República, o espólio da Biblioteca Nacional, assim como artigos de jornal e textos escritos sobre Sophia. O objetivo era chegar a uma visão o mais abrangente possível da autora, que me permitisse revelar uma Sophia completa, nas suas diferentes facetas (criança, mulher, mãe, amiga, poeta, política).
A base da democracia, lembrava Sophia, não eram as eleições, mas sim os direitos individuais. «E em Portugal é dificil as pessoas fazerem valer os seus direitos.» (...) Entre os abalos pessoais — o acidente do filho mais novo que testa a resiliência do casal- e os abalos profissionais, como a nomeação de Sophia para vários cargos depois do 25 de Abril enquanto o marido fica de fora,76 o divórcio torna-se inevitável. Mas serão precisos quatro anos para o juiz redigir a sentença que os separa judicial e definitivamente. O amigo Soares acredita que Sophia sempre teve grande amor por Tareco. Mas apanhou-o numa situação difícil que levaria à separação. O divórcio, mal aceite numa família católica, torna-se a única saída para uma «pessoa vertical e única de carácter, que tinha princípios e cumpria-os». (...) Para medos maiores (na sua hierarquia muito própria) e dúvidas sobre política recorria a Mário Soares. Além dos micróbios e do cancro, o que mais atormentava a poeta eram as quezílias domésticas com as empregadas domésticas, ao ponto de, perante a notícia de uma nova distinção ter afirmado: «Mas eu não quero um prémio. Para que quero um prémio? Eu queria era uma empregada.»
Quando o telefone tocava às quinhentas, normalmente depois das duas da manhã, em casa de Manuel Alegre, já se sabia: só podia ser Sophia E o mais provável era o tema da conversa passar pelas arrelias com as funcionárias de limpeza, que lhe davam volta à cabeça, sobretudo quando deixou de poder contar com Luísa, uma coluna de Hércules da família. (...) Nem os mais próximos, como Miguel Torga, de quem se diz que tinha uma paixão platónica por Sophia, escapavam ao sarcasmo da poeta. Um dia, encontrando-o em Coimbra, Torga diz-lhe que queria escrever um poema sobre ela. Na volta recebeu uma daquelas suas respostas paralisa doras: «Logo agora que está a escrever tão mal!?» (...) O autor de Contos da Montanha acompanhara o crescimento da poeta enquanto jovem e conhecia-a bem. Em carta de 1957 escreve-lhe: «Não há dúvida que os deuses gostam de si, pelo menos tanto como os mortais.» Em entrevista de 2001, Sophia recorda como Torga lhe dizia que ela era sensível demais e isso lhe provocava sofrimento. No final dos anos 1970, Sophia listava o médico escritor entre os autores que mais admirava. Juntamente com Herberto Hélder, Luísa Neto Jorge. E Jorge de Sena. (...) Também Saramago era admirador confesso da poeta. «Olha a beleza disto», disse um dia o escritor a Pilar del Rio, quando estava no hospital, depois de uma operação. «lam e vinham e davam o nome às coisas», era o poema de dois versos de que Saramago tinha gostado. Mas nem a troca de galhardetes inibia Sophia de reagir com obstinação a todos e qualquer um que fizessem observações sobre o seu vício do tabaco. Notado por Saramago, valeu-Ihe um dos comentários arrasadores de Sophia: «Caro amigo, enquanto estou a fumar tenho os dedos ocupados e não estou a escrever patacoadas como muitos fazem.»
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
«A minha mãe só se conseguia concentrar à noite. Recordo-me de acordar às 4 da manhã, ir à sala e vê-la a escrever. Ficava horas no corredor a espreitá-la. Era uma coisa misteriosa e espantosa. » (...) Contra a perigosa «arte de ensinar um povo a não pensar» que é a demagogia, a autora socorre-se dos dizeres de um provérbio africano: «Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba. Não queremos continuar a suportar a baba dos slogans.» (...) A cultura não é um luxo de privilegiados, mas uma necessidade fundamental de todos os homens e de todas as comunidades. A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução, é exatamente porque é capaz de criar cultura. Aliás, porque a própria revolução é um ato de cultura, há sempre «uma profunda unidade entre a liberdade de um povo e a liberdade do intelectual e do artista» (...) «Podem dizer que o povo não lê a maior parte dos escritores portugueses. Eu também não. É evidente que a maior parte dos escritores portugueses tem um uso burguês da cultura, que me maça profundamente.»
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
Fingir que nada se passava. Fingir que a mudança não era imperativa Fingir era um pecado tão grande como tantos. Para a poeta, não fazer nada também era fazer mal. Por omissão. (...) O tempo era de ditadura e a poesia tinha-se transformado num lugar de oposição, clandestinidade até. Nas escolas, trocavam-se volumes de poesia como quem desobedece. Na mesma turma de António Guterres e Luís Miguel Cintra, Nuno Júdice recorda a busca por livros que não faziam parte do programa.
Nos intervalos, no Liceu Camões, em Lisboa, cambiavam-se conquistas literárias. Ora Guterres chegava dizendo, orgulhoso, que tinha acabado de comprar um exemplar de Sophia, Geografia; ora Cintra trazia o Livro Sexto de presente a Nuno Júdice, aniversariante no mesmo dia do amigo encenador. «Procurávamos tudo o que fosse contra a ditadura. Livro Sexto, que é importantíssimo, tem muitos textos com forte componente política. Sophia marcou toda aquela geração».
(...)
Marcou pelos serões literários, ou talvez mais ainda, pelos serões políticos que norteavam uma nova visão do país, realizados na casa da poeta e do contestatário marido. Eram os míticos serões. Na mítica Travessa das Mónicas. Com o mítico casal Sophia e Francisco Sousa Tavares. Símbolo de um período da história de Portugal, o da oposição à ditadura. (...) Arriscando a perseguição da PIDE caso fosse ouvido em locais públicos, quem queria questionar o regime fazia-o em tertúlias ou sessões de poesia organizadas no resguardo das habitações de intelectuais lisboetas. A morada de Sophia e Sousa Tavares, no primeiro andar do número 57 da Travessa das Mónicas, torna-se um desses baluartes de resistência. (...) Tudo o que marcava a vida intelectual do nosso país passava pela Travessa das Mónicas. E eu cresci ouvindo tudo isto. Era uma casa cheia de imprevistos. Era uma casa cheia.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
Aqui, sim, pode ver-se a Grécia com mais Sophia. Apetece ler baixinho o verso que batizou com o nome do local: Na nudez da luz (cujo exterior é o interior)/ Na nudez do vento (que a si próprio se rodeia)/ Na nudez marinha (duplicada pelo sal)/ Uma a uma são ditas as colunas de Sunion. (...) Uma das dádivas da Grécia é uma certa capacidade de espanto. Uma harmonia daquilo que noutras geografias seria inconciliável. De repente do nada, numa interrupção abrupta no tédio de galgar quilómetros pouco menos que iguais entre si, revelam-se pequenos aglomerados de casas coloridas, encarrapitadas na montanha de pedra. Como se não houvesse mais chão na terra. Delfos aproxima-se. (...) Nesta Grécia habita um povo educado por poeta: Homero. No tempo em que a formação era feita com base na memória não livresca, as histórias -e a sua moral - eram passadas oralmente.
Com uma melodia e ritmo próprios, o canto dos poetas fixa-se. Impregna passado e futuro. Na Jónia e em Atenas, Homero torna-se o grande livro que se explica, se dita e se aprende de cor." Assim se cultivam gerações inteiras, inspiradas pela llíada e pela Odisseia.
Homero é, portanto, o educador de toda a Grécia", um apurador das virtualidades do seu povo. Não se limitando a contar batalhas e aventuras marítimas, deixava como herança a perseguição de um ideal humano, muitas vezes simbolizado em mitos que reuniam em si unidade, religião, vida, comportamento ético e sentido da beleza.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
Sophia marca o seu território com a desfaçatez e o sarcasmo que lhe eram conhecidos. Aliás, contra as «mãos horrorosas dos fascistas», a poeta entendia que só havia uma arma: o humor. Quando lhe perguntam o que achava de uma certa senhora salazarenta, respondeu, em tom irónico, que a achava boa, inteligente, séria, culta e bem-educada, fazendo que até os amigos da dita senhora tivessem de dar uma gargalhada.
«É o único sistema: rir de quem nos quer matar.» (...) Os ditadores - é sabido - nāo olham para os mapas. As suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões. O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos.
(...) Argumentando com o primor e autenticidade do que encontrara nas palavras de um homem simples, defende a perspetiva de cultura que devia pautar a vida dos portugueses. Não a cultura dos museus, mas a das pessoas:
Tudo começa por aquilo que se entende realmente como cultura. Para mim só é cultura a cultura da inteireza, a que implica não só o que um homem sabe, mas a sua maneira de ser, de viver e de estar com os outros. Nesse sentido, considero que o povo português é muito mais culto que os intelectuais de Lisboa.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
À crescente contestação e exigências de mudança, o Estado Novo responde com maior repressão e fortalecimento da capacidade de intervenção da PIDE através do decreto n.o 40550, que alarga o âmbito das «medidas provisórias de segurança». De então em diante a polícia política persegue, prende e tortura com impunidade reforçada.
Sophia, Francisco Sousa Tavares e muitos dos seus amigos passam a estar sob constante vigilância da Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
Para os agentes, tudo era digno de registo. Desde os factos mais banais, como as pessoas recebidas em casa, até encontros públicos para apresentações de livros. Os telefonemas eram escutados, as entradas e saídas vigiadas e o correio interceptado. Em carta a Jorge de Sena, em 1962, Sophia lamenta-se: «A PIDE esteve em nossa casa revistando e levou todas as suas cartas.»
Também a poeta foi detida para ser interrogada pela polícia política, como confirmam os espólios depositados na Torre do Tombo.
(...)
A oposição assumida pelo casal levaria a PIDE a prender Francisco Sousa Tavares por duas vezes, em 1966 e 1968.
Para prestar depoimento ou para dar apoio ao marido, Sophia conhecia bem as salas de interrogatório da Rua António Maria Cardoso e o caminho para a prisão de Caxias. As visitas, sempre intermediadas por um vidro, aconteciam na companhia de dois dos filhos de cada vez (os permitidos pelos serviços prisionais), às segundas-feiras. Mais do que uma experiência traumática, visitar um pai detido por se rebelar contra o regime que censurava a liberdade de expressão, impedia a democracia e torturava presos, era uma honra.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery
Num Portugal com a mania de que «escrever para crianças é escrever para patetas», Sophia insistia na importância política de se dirigir ao público jovem. Se a sua poesia era a poesia das ideias e dos valores, que ela praticou como forma de estar no mundo, os contos infantis não o eram menos.
in Sophia de Mello Breyner Andresen de Isabel Nery