Outra das razões desse hegemonismo talvez se encontre na característica preferência do gosto nacional pelo realismo e pelo naturalismo. Em literatura, o português é avesso à introspecção, à análise, à metafísica.
in A Ressurreição das Florestas (1997) de Natália Nunes
A perturbadora e fascinante vida de Ana Luísa, uma mulher da alta burguesia lisboeta, narrada com reflexões, de certa forma críticas, por uma amiga próxima de Ana Luísa, que a acompanha presencialmente ou à distância através da correspondência é uma preciosidade que recomendo ler.
Os múltiplos estados de alma e comportamentos desta mulher que acha ter direito à contradição e de a viver numa sociedade que a recusa veementemente.
O neo-realismo literário e artístico muito naturalmente conheceu uma natural evolução de nascimento, crescimento, adulta pujança, envelhecimento e morte. No entanto, pelo menos entre nós, parece-me que uma parte da sua importância residia na hipervalorização que lhe era atribuída pelos próprios adeptos, praticantes, e admiradores, muitas vezes em detrimento de outras correntes ou de algumas obras isoladas, paralelamente aparecidas no espaço literário e artístico nacional, de forma menos ruidosa, impositiva e reclamada; os neo-realistas não só faziam a festa como nela queimavam as mais ruidosas girândolas de foguetes.
in A Ressurreição das Florestas (1997) de Natália Nunes
Entretanto, por breves alusões e referências que lhe ouvi nos dias precedentes à sua entrada em casa de Paulina, deduzi uma coisa verdadeiramente interessante, não só a respeito da mentalidade e maneira de ser de Ana Luísa, como igualmente acerca de um dos aspectos das relações amorosas: em certa, talvez até em grande medida, uma paixão é desejada, inventada, até mesmo programada pelos seus protagonistas, ou, pelo menos, por um deles.
Por isso, nunca consegui deslindar até que ponto a paixão de Ana Luísa por Sebastião foi também algo de real ou de inventado.
Repito: não foi uma autêntica vocação mística ou monacal o que levou Sebastião Mondeiro a tentar a vida de monge.
Suponho, no seu íntimo existiria desde cedo um conflito ou um problema a necessitar de resolução. A vocação científica, sim, essa precocemente se definiu no rapazinho provinciano, no estudante liceal que, quando em férias, de retorno à aldeia, se entretinha a observar o céu e a rever os exercícios matemáticos; ou na cidade, procurava contactar mestres e frequentar seminários, desprezando grupos de companheiros folgazões, namoradeiros, brigões, convivendo moderadamente com os da sua idade.
Estou convencida, de facto não foi nenhuma vocação religiosa, tão pouco um espírito rigorosamente misantropo que o levaram em determinada altura da carreira de professor e de investigador, a procurar a vida monástica, mas sim a enorme desinquietação que as mulheres introduziram na sua vida.
Pelo menos nas mulheres, talvez o amor não seja algo de espontâneo, mas sim uma construção por elas elaborada com os materiais - a própria ideia de amor - colocados à sua frente, interpostos no seu caminho, como se elas não tivessem outro destino na vida senão o de se tornarem arquitectas e operárias desse edifício que os homens desejam ver erguido para lá se instalarem confortavelmente.
Talvez as mulheres apenas consintam em ser seduzidas; não se apaixonem, mas gostem de despertar paixões; não se dêem, apenas se emprestem. Talvez.
Tenho recebido tantas e tantas declarações de amor! De amor! Olha, para mim a palavra amor é como o mar, sempre sem descanso a chocar com a terra. O rumor das ondas, quando dele nos abeiramos não nos larga os ouvidos, incessante. Amor. Parece uma coisa que o mundo, toda a gente nos quer impor à força, «acabamos sempre por amar alguém, amar alguém, amar, amar»...
Olhou-me demoradamente como se de facto nunca me tivesse visto, com exactidão e minúcia. Sem nunca desviar o olhar, senti que percorreu o meu corpo de alto a baixo, abrindo todas as caixas secretas que possuo, trespassando veias e artérias, varrendo-me a alma direito ao meu coração.
in Estranhos Casos de Amor (2003) de Cristina Carvalho