Segundo Teresa Sousa de Almeida, no seu artigo Capelinhas e candeias acesas Natália Nunes e a reflexão sobre o universo da arte:
O romance Regresso ao Caos, publicado em 1960, é uma alegoria da criação artística e uma crítica implacável à maneira como funciona o comércio e a difusão da cultura no nosso país.
Natália Nunes tem necessidade de apresentar a sua concepção de arte, inserindo uma perspectiva de género, num país que, ainda hoje, silencia a produção escrita das mulheres do século passado.
Ali podia à sua vontade ficar toda a noite sem se deitar, quando aquilo se prolongava, aquela vontade de sonhar com as suas músicas, a sua arte.
Ali podia escrever nas paredes as notas que lhe vinham à ideia quando não tinha papel à mão; quantas frases não tinha ele escrito assim, de improviso, nas portas, nas ombreiras e até no rodapé do quarto! Tudo dependia da posição em que se encontrava no momento em que elas lhe apareciam.
Ler Natália Nunes não foi uma escolha fácil. Ao contrário do marido, António Gedeão, a maioria dos seus livros não foram fáceis de encontrar. Valeram-me os alfarrabistas que me ajudaram a construir este ciclo de leitura durante meses a fio, sem desistirem de mim. Continuo à procura de alguns, mas são já raros e começo a perder a esperança.
Natália Nunes tem sido uma revelação surpreendente e adorei ler o seu Autobiografia de uma Mulher Romântica, uma meditação sobre a vida, as dores e alegrias, as marcas que nos deixa.
Comecei a ler Regresso ao Caos que mantém algumas das características de Autobiografia de uma Mulher Romântica no que respeita à escrita de carácter confessional e de análise psicológica das vivências da personagem, contudo diverge quando aprofunda a alma do criador artístico.
Em paralelo continuo a ler António Gedeão cuja poesia já conhecia parcialmente. Todos os dias leio um poema seu em voz alta e está a ser uma experiência mágica. Quando decidi que o iria ler, tive algumas dúvidas sobre a logística do seu ciclo de leitura e acabei por comprar Obra Completa, porque condensa num só livro a sua obra poética, novelística, teatral e ensaística.
De António Gedeão:
continuo a ler Obra Completa
De Natália Nunes:
acabei de ler Autobiografia de uma Mulher Romântica
Quem sabe se essas fases de depressão não corresponderiam a uma espécie de artimanha inconsciente mas intencional da sua alma que procurava uma oportunidade para um ócio criador, onde a imaginação pudesse dar largas a todos os ímpetos?
Eram duas tendências opostas que se defrontavam no fundo da sua ignota e ainda não expandida personalidade: uma ânsia inquietante de infinitudes, e outra, apaziguadora, de limites definidos e de pacificação de aspirações e de desejos. Da mesma maneira que sofria essas fases de quase decadência física, também Matilde atravessava verdadeiras crises de euforia vital.
A desilusão amorosa de uma personagem feminina, que se refugia na província, seria uma descrição redutora de Autobiografia de uma Mulher Romântica.
Um livro que marcou uma época em que a literatura de autoria feminina começou a ganhar mais destaque, em paralelo com a luta pela emancipação intelectual da mulher portuguesa.
Neste e nos seus futuros livros, Natália Nunes teve a ousadia de escrever sem medo sobre o papel e as limitações da mulher em Portugal, durante os anos 50 e 60. Não é apenas feminismo, mas o feminino na sua essência.
Como já tinha referido anteriormente, a sua escrita tem características woolfianas, servindo-se de uma técnica narrativa de monólogo interior, que aplica o fluxo de consciência para expôr a complexidade do pensamento humano. Uma escrita de carácter confessional que mergulha numa complexa análise psicológica das vivências da personagem.
Mergulhei de tal forma neste livro que me esqueci frequentemente do que me rodeava e essa é a prova da adoração que senti pela leitura desta Autobiografia de uma Mulher Romântica.
Aqui estou outra vez à beira-mar. A meus pés a orla das algas e dos bichos marinhos com este cheiro penetrante, intenso, nauseante, a vida química, elementar, viscosa. Um sol fogoso, sobre o mar azul e a praia vermelha. Vejo-me incolor nesta euforia de cores, é como se o sol me atravessasse toda e me tornasse num ser translúcido.
É irrisória, grotesca, a minha presença de espectro nesta paisagem colorida.
in Autobiografia de uma Mulher Romântica (1955) de Natália Nunes