Encolerizado, logo lhe lancei toda a espécie de injúrias, sem esquecer nenhuma, ao ver que ele me despojava das armas que eram minhas. Ao chegar a este ponto, ele, que não é irascível, ferido pelo que ouvira, replicou-me deste modo: «É que tu não estavas onde nós estávamos, mas longe, onde não devias. Por isso, e porque falas com tanta arrogância, jamais navegarás com elas para Ciros».
Depois de escutar tais palavras e tais afrontas, lancei-me ao mar, rumo a casa, esbulhado do que era meu, por esse malvado e filho de malvados, Ulisses.
Contudo não o culpo tanto a ele como aos que se encontram no poder, pois uma cidade e todo o exército dependem de quem governa. Os mortais que praticam actos injustos, é devido às lições dos mestres que se tornam perversos.
Infeliz de mim, aqui estou a morrer de fome e de sofrimento há já dez anos, alimentando esta chaga que jamais se sacia. Aqui tens o que os Atridas e a violência de Ulisses me fizeram, meu filho. Que os deuses olímpicos lhes dêem uma pena que recompense o meu tormento!
Ao estômago este arco me forneceu o necessário, caçando pombas, durante o voo; e depois, aquilo que a flecha disparada abatesse tinha eu, desgraçado, de o puxar, arrastando o pé doente até aqui.
Desde Homero que encontramos a temática do abandono, da solidão e da traição e, em Sófocles, esse imaginário gira em torno dessa mesma tríade.
Em Filoctetes o abandono, a solidão e a traição são indissociáveis e não lhes é permitida uma existência individual.
Com tal companhia, meu filho, me abandonaram neste deserto, quando, vindos da ilha de Crise, aportaram aqui com a sua frota. Então, contentes de me verem adormecer na praia, à sombra de uma rocha, depois de uma viagem no mar agitado, abandonaram-me e partiram. Como a um mendigo, deixaram-me uns míseros trapos e também algum alimento: bem mesquinho alívio. Que a mesma sorte lhes toque!
Porque o abandono de Filoctetes não é um abandono qualquer, é um abandono marcado por uma chaga viva, pela aridez da paisagem e pelo isolamento da ilha de Lemnos. Dez anos de provações marcados na carne e na alma e que afastaram Filoctetes da sua condição humana, conhecendo ele agora apenas a sua condição de selvagem.
A solidão que ele vivenciou não pode ser descrita como ausência, uma simples falta de companhia, mas sim como a condição que lhe foi imposta: a de renegado.
Excluído do seu próprio mundo pelos homens com quem lutou lado a lado, Filoctetes vive numa condição limítrofe entre a civilização e a barbárie, revelando um contraste trágico entre a repugnância que a sua aparência manifesta e a nobreza que a sua personalidade revela.
O abandono tem muitos nomes, mas apenas uma face, a de Filoctetes.
Vamos, meu filho, agora vais conhecer também esta ilha. Dela nenhum navegante se aproxima de bom grado, pois não possui porto algum, nem há onde se desembarque para trocar as mercadorias ou se encontrar hospitalidade. Não navegam para cá os mortais que têm bom senso.
O abandono de Filoctetes na ilha de Lemnos deve-se à sua ferida no pé e há várias versões que a tentam explicar.
Uma versão indica que Filoctetes chefiava um contingente de sete naus com cinquenta arqueiros, mas não chegou a Tróia com os outros chefes, porque durante a escala em Ténedo, foi mordido no pé por uma serpente, enquanto procedia a um sacrifício. A ferida infectou de tal modo que exalava um odor de putrefacção insuportável e por isso, Ulisses e os outros chefes abandonaram-no em Lemnos, onde permaneceu dez anos.
Outra versão conta que Filoctetes foi ferido não por um animal, mas por uma flecha de Héracles envenenada, atingindo acidentalmente o seu pé, como vingança de Héracles, que quis desse modo punir o perjúrio cometido por Filoctetes ao revelar o local onde ardera a pira erguida no Eta.
Outra versão ainda indica que os gregos abandonaram Filoctetes na ilha para que ele curasse a ferida. Em Lemnos exista um culto a Hefesto cujos sacerdotes eram conhecidos pelos seus conhecimentos no tratamento de mordidas de serpente. O herói ter-se-ia curado, chegando mais tarde a Tróia, para se reunir com o exército grego.
No entanto, para Sófocles o herói feriu-se na pequena ilha de Crise, onde foi mordido por uma serpente escondida nas ervas altas, no momento em que limpava o altar de Crise.