Um conto em particular desta colectânea de contos - O Cocheiro da Morte -, que me andou a profanar as vísceras, a violar o meu segredo, a transgredir-me, arrombando as crenças que me contaram, devassando as raízes que me sustentam, sussurando-me a verdade que sempre neguei por não conhecer outra.
Um conto que detestei ler desde o seu início, que abandonei a meio, que retomei e abandonei outra vez, que recusei ler, com quem batalhei.
É sempre assim com histórias que vão aniquilar vazios que pensei estarem cheios, que vão crua e desumanamente contar aquilo que não quero ler, destruindo partes de mim que irão renascer numa outra dimensão.
Nas suas últimas páginas não o quis abandonar, retardando a sua leitura para não chegar ao seu fim, que criou um novo início em mim.
Fiquei sem saber o que dizer sobre este silêncio de abandono em que ele me deixou.
Em breve virá a manhã do primeiro dia do ano, David, e, ao acordarem, o primeiro pensamento dos homens será para o novo ano; pensarão em tudo o que esperam e desejam que este ano lhes traga e depois pensarão no futuro. E o que eu queria era poder aconselhá-los a não pedirem nem a felicidade do amor, nem o sucesso, nem a riqueza ou a longa vida, nem sequer a saúde. Não, que se limitem a juntar as mãos e a concentrar as ideias num único pedido: «Senhor, fazei com que a minha alma alcance a maturidade antes de ser ceifada!»
-Eu sou a força que tem poder sobre os filhos dos homens - responde o cocheiro, e a sua voz torna-se grave. -Vou incomodá-los, quer morem em casas altas ou em caves miseráveis. Dou a liberdade aos escravos e arranco os reis dos seus tronos. Não há fortaleza suficientemente poderosa para que eu não lhe possa escalar as muralhas. Não há ciência que consiga parar o meu caminho. Atinjo as pessoas que, em segurança, viviam felizes, e dou bens e heranças aos miseráveis que sofreram a pobreza.
Quando um coração está cheio de orgulho, dá o seu amor aos grandes e poderosos do mundo; mas, quando tem apenas humildade e caridade, a quem dar o seu mais ardente amor senão ao mais infeliz, o mais desiludido, o mais desvairado e o mais endurecido?
Estão os dois profundamente tristes. A mulher chora em silêncio e às vezes limpa os olhos com um lenço amachucado. Tem gestos bruscos, como se as lágrimas a impedissem de cumprir um dever. Os olhos do homem estão também vermelhos de emoção, mas não se deixa levar pelo desgosto, porque não está só.
Admito, David, que não há tarefa mais horrível que a de conduzir esta carreta de casa em casa. Por toda a parte onde o cocheiro aparece, esperam-no lágrimas e gemidos; por toda a parte é a doença e a destruição, o sangue, as feridas, o terror. E há pior ainda: o pior é o espectáculo da alma que se debate no arrependimento e na angústia do que há-de vir.
O cocheiro permanece no limiar do além.
Como os homens, só vê injustiças e decepções, partilhas desiguais, trabalho inútil e desordem.
Os seus olhares não vêem o suficiente do outro mundo para descobrir o sentido da vida terrestre.
Consegue, por vezes, entrever qualquer explicação, mas a maior parte das vezes agita-se nas trevas e na dúvida.
Já em 1942, a biógrafa Elin Wägner enfatizara a importância da amizade com mulheres na vida de Lagerlöf. Finalmente publicada em 1990, a sua enorme colecção de cartas particulares, entre as quais as cartas de Lagerlöf a Sophie Elkan, Du lär mig att bli fri (Ensinas-me a ser livre) contam uma história de amor que começou em 1894 até à morte de Elkan em 1921.
"És muito bonita e sei que seremos amigas." - assim começaram os seus 27 anos de relacionamento. Elkan, nascida Salomon, pertencia a uma proeminente família judaica de Gotemburgo e tinha perdido o seu marido e a filha, dez anos antes para a tuberculose.
Dominava várias línguas e era extremamente letrada. Elkan acompanhou Lagerlöf em viagens a Itália, Jerusalém e Egipto e Selma dedicou o seu romance Jerusalém (1901) à sua "companheira de vida e de cartas".
Elin Wägner escrevera em 1942 que "o contacto que Selma manteve com os homens foi nas suas obras-primas, na esfera da sua vida intelectual, enquanto que, com as mulheres, foi na sua vida real".
Selma Lagerlöf & Sophie Elkan
Imagem elisa-rolle.livejournal.com
As duas amigas viajaram para Roma. A sua primeira grande viagem. Sophie de cabelos crespos, feminina, envolta em vestidos esvoaçantes, com olhos escuros, observando e comentando tudo. Selma, logo atrás de Sophie, com o seu rosto fresco e juvenil, vestida de forma desajeitada e com cabelo curto. Parecia haver uma forte disparidade visual entre as duas amantes, dois opostos atraídos um pelo outro outro.
As cartas que trocaram em vida sugerem um amor profundo, havendo lugar também à crítica, frequentemente em desacordo sobre a escrita uma da outra.