Tudo em nome da pandemia, essa deusa que agora põe e dispõe da nossa humanidade
Fiz apenas duas visitas à biblioteca este ano e tudo por culpa da pandemia.
Uma em Junho e outra, mais recente, em Outubro.
Em Junho não me autorizaram a entrada. Fiquei à porta e entreguei uma lista dos livros que queria requisitar rabiscada em papel. Momentos depois entregaram-me os livros que pedi dentro de um saco de plástico transparente. Como se estivesse a pedir livros clandestinamente para ler, fugindo depois com eles debaixo do braço, pela calada do dia, esperando não ser vista pelas ruas vazias.
A ausência das estantes da biblioteca foi tão surreal e desconectada, que quando acabei de ler os livros que trouxera, devolvi-os e não voltei a requisitar mais.
Em Outubro voltei, deixaram-me entrar na biblioteca e finalmente senti o regresso daquela banalidade que tantas vezes repreendi e pela qual senti tanta saudade. Aquela banalidade do deambular pelas estantes, do tocar nos livros, espreitar-lhes as páginas.
Quis tocar num livro e em pleno gesto declararam que estava proibida de lhe tocar. Tudo em nome da pandemia, essa deusa que agora põe e dispõe da nossa humanidade.
A repreensão não vem já pela perturbação do silêncio, mas por tocarmos nos livros, o estranho e singular propósito da existência de uma biblioteca.
Apontei os livros que queria e trouxe-os comigo para casa.
A biblioteca, com as suas estantes cheias de livros intocáveis, continua a ser surreal.
A banalidade, que tanto repreendi, ainda não regressou e nunca a quis tanto.