Um mau livro significa a perda de uma boa floresta
É possível imaginar que os bons livros, mesmo se fechados, ainda roguem pragas. As épocas que os ignoram acabam por se pôr a si mesmas de castigo, sofrer duras penas. O que é, de resto, bem merecido. Nada tão severo como o serem avassaladas por populismos, derivas de prepotência autoritária e imbecil, essas formas de histeria que dominam os ímpetos colectivos e que trazem consigo o fedor característico da ignorância. Mas como não lamentar a forma como os deixam para ali, amargurados nas estantes, sentindo a comichão das ideias, as letras apertando como parafusos, mundos condensados em impressões dessas que poderiam beliscar-nos, ajudar nos períodos de vigília, sacudindo o pó do tédio, espreguiçando os nervos.
Borges, de algum modo, nunca fez outra coisa que trautear uma harmonia vigilante enquanto percorria o corredor labiríntico de uma biblioteca, ladeado de estantes que se elevavam unindo idiomas às mais extensas regiões. “Estes caminhos foram ecos e passos,/ mulheres, homens, agonias, ressurreições,/ dias e noites,/ fantasias e sonhos,/ cada ínfimo instante de ontem/ e dos ontens do mundo,/ a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,/ os actos dos mortos,/ o amor compartilhado, as palavras”...
São as palavras laboriosas e ásperas que de “uma boca em pó tornada” encontram um ritmo certo e penetrante para nos fazer entrar por algum lado na infinita trama urdida dos efeitos e das causas, esse espelho em que nos vemos outro, outros, o segredo da metamorfose literal.
Se há um provérbio que nos diz que um mau livro significa a perda de uma boa floresta, um livro enlouquecido com a sua canção quase escarnece da nossa mortalidade. E por instantes dá-nos a sensação de termos bebido um gole de uma lucidez que rejuvenesce de tal modo os sentidos que parece que antes nem éramos nascidos.
Um bom livro dá vida com cada incidente, cada virar de página, expondo-nos à sua cadeia de efeitos, ao seu perpétuo susto. Sem os livros não estamos menos perdidos, mas não fazemos sequer ideia disso. Eles servem, não para resolver os problemas por nós, não para nos entregar de mão beijada as soluções, mas para nos manter num estado permanente de alerta, numa prontidão absoluta para agirmos ou reagirmos de forma verdadeiramente criativa e engenhosa.
E é bom começar por aí, por reconhecer como estamos a viver um desses momentos em que é imperativo abandonar a atitude de sujeição, não embarcar em delírios nem se deixar paralisar pelo medo. Desde logo porque, como notou Brecht, o fascismo quando aparece tem o travo adocicado e quente de uma bebida reconfortante: “para quem está enregelado até aos ossos, um gole rápido poderá parecer um bom remédio”...
in ReLI. O vírus já fez cair as divisões tribais entre as livrarias independentes por Diogo Vaz Pinto